A retórica da crise de recursos não pode abafar as multidões que mostram, através de marchas de solidariedade, “o desejo por uma democracia universal e absoluta”.

Por Fabrício Toledo de Souza

 É de fato uma crise humanitária e inegavelmente a maior das últimas décadas. Há quatro anos atrás, a crise dos refugiados já era a maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com 42,5 milhões de pessoas fugindo de suas casas e, em três anos, o número cresceu em 40%. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por dia se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internos – um crescimento quadruplicado em curto período. Neste ano, o número de pessoas obrigadas a fugir deve ultrapassar os 60 milhões. Dos solicitantes de refúgio, a maioria é constituída por crianças.

O conflito na Síria é sem dúvida o mais grave, com impacto em todas as partes do mundo. O país tem a maior população de deslocados internos (7,6 milhões) e também é a principal origem de refugiados (3,88 milhões, ao final de 2014). Os sírios se tornaram a maior população refugiada sob mandato do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e, desde 2011, tem sido o principal motivo do crescimento acelerado do número de deslocados. O Afeganistão e a Somália vêm em seguida, sendo os países de origem de 2,59 milhões e 1,1 milhão de refugiados, respectivamente.

O contingente de refugiados equivaleria ao 24º país mais populoso do mundo, se estes fossem contabilizados como uma só população. Ainda segundo o Acnur, as populações refugiadas e de deslocados internos cresceram em todas as regiões do mundo, com destaque para 15 regiões atingidas por conflitos que se iniciaram ou se agravaram: Costa do Marfim, República Centro-Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, na África, Síria, Iraque e Iêmen, no Oriente Médio, Ucrânia, na Europa e Quirguistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão, no continente Asiático.

Na medida em que as rotas para a Europa tornam-se cada vez mais restritas e vigiadas, os países da América do Sul surgem como opção para os deslocados, incluindo os sírios, que já constituem a maior população de refugiados no Brasil. O aumento dos fluxos de deslocados é atribuído à postura nçadas do mundo.


1°.  A criação e o aprimoramente de obstáculos nas fronteiras terrestres – como a criação de muros e fiscalização militar nas fronteiras, como acontece atualmente na Hungria, Croácia e em outras partes da Europa – obrigaram os deslocados a buscar caminhos cada vez mais perigosos. Mais de 500 mil pessoas atravessaram o Mar Mediterrânio desde o início de 2015, em busca de proteção no continente europeu. Somente em setembro, foram mais de 160 mil pessoas, contra aproximadamente 34 mil no mesmo período do ano anterior. De acordo com dados oficiais do ACNUR, 2.980 pessoas morreram ou despareceram durante a travessia neste ano.


O impacto da crise no Brasil

Nos últimos cinco anos, o número de pessoas pedindo refúgio no Brasil aumentou vertiginosamente. Foram feitos 25.996 pedidos no ano passado, contra 1.165 em 2010 — um aumento de mais de dois mil porcento. É o maior numero de solicitações entre os países da América Latina. Ainda assim, o número oficial de pessoas reconhecidas refugiadas é bastante modesto: são 7.946 pessoas, de 81 diferentes nacionalidades.  A maior parte dos refugiados é da Síria – com 2.077 pessoas reconhecidas refugiadas — seguidos dos colombianos, angolanos e congoleses (da República Democrática do Congo).

Em 2014, o Brasil teve também sua melhor taxa de validação, aprovando cerca de 88% dos pedidos de refúgio. Em 2010, a taxa foi de 38,4%. O aumento poderia ser explicado, em parte, pelo alto índice de deferimento dos pedidos feitos por sírios. Entretanto, mesmo excluindo os sírios, a taxa permanece alta: 75,2% para os pedidos feitos por nacionais de outros países.

Segundo declarações do representante do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), no final de 2014, cerca de 12 mil pedidos estavam aguardando julgamento. Para dar conta dos pedidos em andamento – e dos novos que devem chegar – o governo afirma que diversas mudanças estruturais serão feitas, desde contratação de pessoal, até reformulação da gestão dos processos e reavaliação do modelo decisório.

O número de sírios chegando ao Brasil tornou-se relevante sobretudo depois da aprovação da Resolução 17 pelo CONARE eliminando exigências desnecessárias para  emissão de visto para as pessoas afetadas pelo conflito.  Segundo dados do Comitê e do Ministério das Relações Exteriores, cerca de 8 mil pessoas se beneficiaram deste visto especial. Em setembro de 2015, poucos dias depois da imagem do corpo do menino Aylan Kurdi  ter circulado o mundo, a resolução foi renovada por mais dois anos o que pode aumentar o número de sírios chegando ao País.

Os Estados, as pessoas e as narrativas da crise

A crise dos refugiados é também uma crise da narrativa da própria crise: De que se trata afinal esta crise? Certamente, é uma crise para as pessoas obrigadas a deixar suas casas, suas famílias, seus vínculos, seus trabalhos, seus afetos e seus futuros. Uma crise para aquelas pessoas que testemunharam a morte de seus familiares e amigos, que carregam cicatrizes e dores. É também uma crise para os que vivem hoje em precários campos de refugiados, abandonados à própria sorte entre fronteiras vigiadas ou expostas aos naufrágios no Mar Mediterrâneo.

Os Estados têm construído uma narrativa de crise de recursos. Certamente, uma grave crise para os países que estão recebendo milhares e milhares de pessoas, todos os dias. Na dimensão que ganha hoje, a crise tem sido elaborada principalmente pelos países mais ricos, onde a chegada de refugiados, embora em número crescente, ainda é pequena em comparação com o que acontece nos países vizinhos aos conflitos — para ficar em apenas três exemplos, o relatório do Acnur mostra que a Turquia recebeu 1,9 milhão de sírios em quatro anos enquanto Líbano e Jordânia receberam 1,1 milhão e 629,6 mil, respectivamente.  

A crise, portanto, é composta de muitas outras crises, paradoxos e nuances, inclusive para o Brasil, que definitivamente passou a integrar o horizonte dos refugiados, migrantes e deslocados em geral. Se uma dimensão da crise é a emergência e o crescimento dos fluxos, a outra é a imposição de formas de contenção dos fluxos. E não apenas através de barreiras e obstáculos materiais, como as cercas, os muros ou militarização ostensiva das fronteiras, mas também por meio da criação da imagem do que é um refugiado e sua distinção em relação aos migrantes.

Na disputa de narrativas, os classificados como migrantes (ainda que sejam refugiados e ainda que esta distinção seja repleta de muitas nuances) são hoje tratados como mais uma das ameaças à segurança, à cultura e à identidade nacional. Dentro desta lógica, a questão dos migrantes é sempre tratada pela narrativa de invasão ou dentro de um enquadramento  do traficante de pessoas. Formas de escamotear o problema e fragmentar a realidade.

Sujeitos em movimento

Se os refugiados — ou os migrantes e os sujeitos em fuga, de modo geral — fugiram em razão da ausência de democracia em seu país de origem, sua presença nos países de acolhida é um lembrete permanente da importância de democracia, inclusive no que diz respeito a quem merece cidadania e quem decide sobre a cidadania.  A fuga, em si, não é apenas o fruto de um ato desesperado de vidas em risco. É também a irrupção de formas inteligentes de resistência contra a violência, a tirania, a opressão e à miséria.

E quando as multidões de cidadãos se juntaram aos refugiados — seja em redes de solidariedade, como acontece em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, seja em marcha dentro (e cada vez mais para dentro) das grandes cidades, como acontece hoje na Europa — elas não apenas pretendem mostrar sua piedade e misericórdia. As multidões em solidariedade e em marcha — nacionais e não-nacionais,  refugiados e não-refugiados, migrantes e não-migrantes — estão demonstrando que uma cidadania global é possível. Que há o desejo por uma democracia real e absoluta, feita desde baixo. Nem “razão de Estado”, nem crise, nem piedade; mas cidadania universal, em excesso, para todos.


2°.

Os refugiados estão sendo vítimas de práticas estatais absolutamente terríveis, como contenção em campos (como guetos) com privação alimentar, falta de condições básicas de abrigo, saneamento e saúde, deportação e contenção, classificação, etc. A morte de uma mulher por congelamento, no campo de campo de Baalbek, no Líbano, que abriga refugiados sírios e sofre com um rigoroso inverno na região (de acordo com o jornal turco Anadolu, disponível em http://www.aa.com.tr/en/life/syrian-woman-freezes-to-death-in-lebanon-refugee-camp/83864) é a outra imagem emblemática desta crise.


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