A historiadora Monique Sochaczewski problematiza alguns dos princípios do movimento BDS e questiona quem se favorece com o movimento.
Por Monique Sochaczewski
Crescentemente mais se fala no Brasil sobre o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) contra o governo israelense. O posicionamento de pessoas públicas como Caetano Veloso e Jean Wyllys a esse respeito atraiu grande atenção na mídia e nas redes sociais nos últimos meses. Acadêmicos brasileiros ou sediados no Brasil engajam-se cada vez mais também, firmando abaixo-assinados e buscando convencer colegas e alunos que façam o mesmo. Nessa própria revista, no número anterior (nº 2), o antropólogo brasileiro sediado na Europa, Leonardo Schiocchet, na entrevista “As Verdades para além das Narrativas”, tentou explicar porque é favorável ao movimento.
Explicarei aqui porque sou, pessoal e profissionalmente, contra esse movimento, em especial no que se refere ao boicote acadêmico, e porque entendo-o como punição coletiva, indignação seletiva, com certo grau de antissemitismo e com uma provável agenda política por trás.
1) Em termos pessoais e profissionais, me coloco contra o boicote acadêmico por dois motivos. O primeiro é porque as universidades israelenses são também amplamente frequentadas e desenvolvidas por árabes e muçulmanos. Vou citar alguns exemplos com que me deparei nos últimos tempos. Em 2013, ao participar do 13th International Congress of Ottoman Social and Economic History (ICOSEH), em Madri, tive minha mesa-redonda mediada pelo chefe do Departamento de História da Universidade de Haifa, Mahmud Yazbek, um “árabe-israelense” muçulmano. Já em 2014, tive a honra de conhecer na FGV, onde então trabalhava, o professor Edriss Titi, originalmente do Instituto Weizmann, de Rehovot, mas que passava um tempo na Escola de Matemática Aplicada (EMAp) no âmbito do programa “Ciências sem Fronteiras”. Aprendi muito com ele sobre os esforços crescentes de inclusão dos árabes-israelenses na academia local, em que Titi tem papel de liderança. E em meados de março último, tivemos no Brasil a presença do jornalista e acadêmico turco Kerim Balci, falando sobre temas como terrorismo e as dificuldades da academia e mídia ocidentais em de fato entender as questões do Oriente Médio. Balci atuou oito anos em Israel, como correspondente do jornal Zaman e lá cursou também o mestrado, na Universidade Hebraica de Jerusalém, com pesquisa sobre o passado otomano da cidade que os israelenses chamam de capital. Por fim, só para constar, Omar Barghouti, fundador do movimento BDS em 2005, tem mestrado em Filosofia e cursa correntemente o doutorado na mesma Universidade de Tel Aviv, onde eu também iniciei meus estudos de História, há muitos anos. Não há dúvida, portanto, que as universidades israelenses têm inúmeros problemas, mas são na quase totalidade centros de excelência, com poucos paralelos em termos de infraestrutura e produção no Brasil, e abrigam os cidadãos árabes do país e mesmo eventualmente acadêmicos muçulmanos não-árabes, como o caso de Balci.
as universidades israelenses têm inúmeros problemas, mas são na quase totalidade centros de excelência, e abrigam os cidadãos árabes do país e mesmo eventualmente acadêmicos muçulmanos não-árabes
A segunda razão é que a academia israelense produz excelência científica (sim, vou ressaltar que o país possui sete prêmios Nobel em áreas como Química e Economia, porque esse é certamente um padrão de excelência) e também pensamento crítico. Como debater sobre fascismo em qualquer canto do planeta sem citar Zeev Sterenhell? Ou tratar da história do marxismo sem passar por Shlomo Avineri? Quem pode realmente discutir Big ou Global History sem citar Yuval Noah Harari ou Diego Osltein? Isso sem falar de toda a historiografia pós-sionista que inclui gente como Tom Segev ou mesmo Shlomo Sand, e lembrando que o escritor Amos Oz, fundador e militante do grupo Paz Agora e crítico feroz da ocupação, é professor de Literatura na Universidade Ben Gurion, em Beer Sheva.
2) Falo agora por que entendo o boicote acadêmico como punição coletiva, indignação seletiva, com certo grau de antissemitismo e com uma agenda possível política por trás. O ponto da punição coletiva junta-se em grande medida ao que disse anteriormente: as universidades israelenses realizam pesquisa de ponta não necessariamente conectada com a ocupação, contam com muitos acadêmicos e estudantes árabes ou muçulmanos de outros lugares, e AINDA é ali – e em parte na mídia e organizações da sociedade civil – que se fazem algumas das críticas mais contundentes à forma como historicamente os palestinos foram tratados, bem como os desmandos da ocupação.
No que diz respeito à indignação seletiva, vou usar só um exemplo, mas poderia ainda falar das ocupações da Crimeia, do Tibete e Nagorno-Karabakh, como ilustração. Recentemente, tive também a oportunidade de morar na Turquia, onde pesquisei para meu doutorado, e também tive uma rica experiência acadêmica e pessoal. A Turquia é um país com um passado mal resolvido em relação aos “acontecimentos de 1915” com os armênios, que se pode dizer que ocupa militarmente o norte da ilha do Chipre e que renova seu confronto com os curdos do sudeste do país. Não falta sangue e desrespeito aos direitos humanos, portanto, em seu passado e em seu presente. Nos últimos meses, tanto por uma mudança de opinião curda em relação ao governo AKP (deixando de votar no partido por conta da criação de um partido mais próximo de seus anseios, o HDP), como em função do papel de relativo sucesso militar do grupo curdo na Síria YPG frente aos avanços do “Estado Islâmico”, uma situação que beira à guerra civil voltou em áreas curdas. Prisões arbitrárias, cercos, invasões de domicílio e mesmo acusações de assassinatos de inocentes por parte das forças do governo turco vêm acontecendo no sudeste do país. Gerou-se então inquietação entre acadêmicos turcos, que firmaram um abaixo-assinado intitulado “Nós não seremos parte desse crime”, criticando veementemente o governo. Mais de mil acadêmicos turcos e cerca de trezentos estrangeiros (entre eles David Harvey e Immanuel Wallerstein) se comprometeram com o documento que enfureceu o presidente Erdogan e vem gerando perseguições, demissões e mesmo prisões entre os professores e pesquisadores que atuam na Turquia. Ao que me consta, não há acadêmicos brasileiros se posicionando a respeito do duplo desrespeito turco: à liberdade acadêmica e à “causa curda”.
No que diz respeito ao antissemitismo, queria deixar claro que discordo de muitos que qualificam qualquer crítica à política israelense como “antissemita” ou oriunda de um “self-hating jew”. Muitas das críticas são válidas e mesmo necessárias. Diferente da campanha anti-Apartheid da África do Sul, porém, que tinha claro objetivo de acabar com a opressão da maioria, o BDS parece ter uma agenda maior contra a existência do Estado de Israel e o antissemitismo pode ser a razão. O caso mais recente foi o do cantor norte-americano judeu Matisyahu que teve seu show no festival espanhol “Rototom Sunsplash”, no ano passado, inicialmente cancelado porque se recusou a endossar um estado palestino. Em 2015 também, a Universidade da Califórnia, em Davis, testemunhou gritos de “allahu akbar” e pinturas de suásticas em fraternidade judaica logo após ações do movimento BDS no campus. Tentativa de cancelamento de um show de um cantor judeu norte-americano e pintura de símbolos claramente antissemitas não deixam muitas dúvidas de que parte do movimento parece não se ater aos princípios explícitos de demanda do fim da ocupação de 1967, desmonte do muro e de colônias, fim do sistema de discriminação racial contra cidadãos palestinos e aceite do retorno dos refugiados. Como ressaltou o jornalista Roger Cohen em coluna recente no NYT, o antissionismo resvala claramente para o antissemitismo por sua natureza anti-histórica: “Ele nega a longa presença judaica na Terra Santa e seus laços com a região. Menospreza a relação fundamental entre o antissemitismo europeu assassino e a decisão dos judeus sobreviventes de abraçar o sionismo na convicção de que só a pátria judaica poderia mantê-los salvos”. Se a ocupação é claramente ilegal, a existência do Estado de Israel não é. Ele nasceu da Resolução 181 das Nações Unidas de 1947, em que o Brasil, inclusive, teve um papel crucial.
O movimento BDS nasceu em 2005 a partir da atuação de 170 organizações civis palestinas e tem na figura de Omar Barghuti um de seus expoentes. Nos últimos tempos, suas ações junto à opinião pública de fato levaram a empresas estrangeiras a retirar investimentos em Israel, como os casos da Orange e G4S, e mesmo empresas israelenses a se retirarem de territórios ocupados como Soda Stream e Ahava. Diz-se um movimento de Direitos Humanos não-violento e, de fato, sobretudo as táticas de desinvestimento, vêm impactando a economia israelense. Mas, em que medida, o movimento não vem também servindo a interesses de países da região? Para a cientista política Ofira Seliktar, por exemplo, o movimento deve ser lido como parte do fenômeno mais amplo do “conflito assimétrico brando”, e que serve a interesses sauditas, cataris e iranianos, cujas fundações vêm despejando recursos em instituições com militância pró-BDS.
Acredito realmente valer aprofundar pesquisas sobre os interesses por trás desse movimento, não para desqualificar o movimento civil original, mas para verificar em que medida a ele se coadunam interesses de potências regionais.
Concluo dizendo que o conflito israelo-palestino é mais complexo do que retrata a imprensa e muitos círculos acadêmicos no Brasil. A meu ver, a ocupação israelense de territórios palestinos não é somente ilegal pelo Direito Internacional e desrespeita os direitos dos palestinos, mas ela corrói em grande medida a própria democracia israelense, como previu Yeshayahu Leibowitz e como concordam ex-chefes do Shin Bet entrevistados no documentário “The Gatekeepers”.
A forma como o movimento BDS vem se colocando em termos acadêmicos, porém, acaba atendendo à direita fanática israelense e ao radicalismo islâmico de alguns palestinos, já que mina qualquer possibilidade de diálogo. Aqueles que têm visões críticas de cada lado e poderiam AINDA ter algum papel de ponte acabam sendo mais silenciados ainda com iniciativas como esta. Eu, diferentemente do que disse o antropólogo Leonardo Schiocchet, acredito que justamente a academia, exatamente por ser o lugar onde se prega a não “essencialização” do outro, que ressalta a importância de conhecer a História e os conflitos de memória, a busca por empatia, o pensamento crítico e não doutrinário, deveria ter um papel mais amplo de lançar luz para iniciativas de busca por solução, que inspirem um diálogo construtivo e soluções realistas. É isso que tento, humildemente, fazer em meus cursos, palestras, escritos e eventos que organizo. Acadêmicos, a meu ver, deveriam ajudar na busca por solução, mais que reforçar o problema.
Sobre a autora:
Monique Sochaczewski é doutora em História, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e colunista da REVISTA DIASPORA.