O historiador Ariel Pires de Almeida analisa o surgimento do Movimento Não-Alinhado e seu posicionamento no conflito Israel-Palestina
Ariel Pires de Almeida
Não-Alinhamento e coexistência pacífica não eram ideias novas no verão de 1961, quando Belgrado, hoje capital da Sérvia, sediou a conferência inaugural do Movimento dos Não-Alinhados. O projeto de coexistência pacífica sem alinhamento a nenhuma das grandes potências, Estados Unidos e União Soviética, se tornou a bandeira do Terceiro Mundo emergente, ao lado de europeus e americanos pacifistas, anti-imperialistas, socialistas e expoentes da Revolução Russa de 1917. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os continentes asiático e africano passaram a se libertar das amarras do colonialismo. O medo de um terceiro conflito global, somado à percepção das alianças militares como tentativas de recolonização, levaram os novos povos livres da África e Ásia a se unirem no seu próprio projeto, recusando a união militar com qualquer uma das superpotências. Neste contexto, emerge o “Espírito de Bandung”, em 1955, de não-intervenção e coexistência, celebrado pelo conceito hindu de “Panchsheel”, trazido pelo presidente indiano Jawaharlal Nehru.
O “triunvirato” – os presidentes Marechal Tito, da Iugoslávia, Nasser, do Egito, e Nehru, da Índia – encontrou-se pela primeira vez no verão de 1956, na ilha adriática de Brioni. O marechal Tito possuía relações próximas com Índia e Egito desde de meados daquela década.
Os pais do Movimento Não-Alinhado tinham uma coisa em comum, eram líderes de nações que lutavam para tornarem-se parte do Sistema Mundial como Estados soberanos e livres.
As potências centrais trabalharam duro para impedir tal aliança. Ficou decidido entre os “Três Grandes” vencedores do conflito mundial (Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética) que o antigo reino Iugoslavo seria dividido; o Império Britânico dilacerou o subcontinente indiano entre muçulmanos e hindus e aplicou a mesma estratégia “balcanizadora” aos restos do Império Otomano. Entretanto, havia uma diferença fundamental entre Índia, Egito e Iugoslávia. O projeto iugoslavo era orientado em direção ao futuro, não ao passado. Baseou-se no ideal de “Fraternidade e Unidade”. Não havia tradição de “Iugoslavismo” ou a memória de um passado glorioso. Para árabes e indianos, a referência histórica sempre fora de uma glória a ser recuperada. A unidade dos não-alinhados, portanto, só se tornaria factível por vontade política, não por afinidades milenares.
O processo de não-alinhamento foi, desde o princípio, de uma unidade secular. Para a Índia, o investimento em criar o Movimento Não-Alinhado veio do fracasso da Conferência de Bandung, em 1955. Ficaram claros os limites de uma coalizão internacional baseada em Estados não-brancos com pouco em comum além do passado colonial. A decisão de se juntar ao Egito e à Iugoslávia saiu da conclusão de que o primeiro passo a uma coalizão multinacional efetiva só poderia se dar num acordo político baseado em princípios fundamentais. O “triunvirato” concordou que a maior ameaça à ordem global e à sua própria segurança nacional viria do conflito entre as superpotências. A questão era a entrada de Estados recém libertos da dominação imperial na sociedade internacional existente. O isolamento não era mais possível. Fazia-se necessário tomar um posicionamento no sistema internacional.
Havia, porém, uma particularidade comum aos três: eram Estados fronteiriços.
A fronteira possui duas naturezas, ela separa ao mesmo que une.
A Iugoslávia separou e uniu Europa e Ásia; católicos, ortodoxos, muçulmanos; Russia, Alemanha, Italia, Turquia; a terra de ninguém dentre os Habsburgos e a Grande Porta. Egito é a fronteira da África, Ásia e Mediterrâneo, enquanto a Índia separa e une o Oriente Médio muçulmano da China confuciana, África Oriental e Afeganistão. Não há espaço nas fronteiras para solidariedade, apenas interesses. Acordos eram forjados de acordo com necessidades políticas. Era a exata caracterização desses Estados como fronteiras que os fez ricos e plurais em seus tempos gloriosos. Foi também o que os transformou em objetos de disputa e cobiça pelas grandes potências nos séculos XIX e XX. A solução só poderia vir da unidade em torno de um projeto político de neutralidade.
O Oriente Médio
O conflito árabe-israelense foi um tema central de preocupação do movimento. Não apenas tinha em Nasser, um dos cinco fundadores – ao lado de Tito, Nehru, do ganês Nkrumah e o indonésio Sukarno -, uma figura central da disputa, mas fora também um dos principais terrenos de conflito internacional. Quando Cairo tomou controle do canal de Suez, em 1956, e uma operação secreta conjunta de franceses, israelenses e britânicos o “libertaram”, União Soviética e Estados Unidos apoiaram Nasser. A situação era outra em 1967. A guerra dos 6 dias se tornou uma disputa das superpotências. Ao longo deste curto período, Egito cortou relações com EUA, enquanto URSS, seguida de todos os países membros do Pacto de Varsóvia com exceção da Romênia, terminaram suas relações diplomáticas com Israel. Iugoslávia seguiu seus camaradas socialistas e apoiou seu amigo de longa data.
O mundo assistiu atônito à maior ameaça de conflito nuclear desde a crise dos mísseis, cinco anos antes, em 1962. A União Soviética se aproximara do Movimento Não-Alinhado, especialmente depois de aliená-lo com suas políticas nucleares em 1961. A luta contra a proliferação nuclear sempre fora uma bandeira central do movimento, apesar de, com o tempo, muitos de seus países membros terem construído seus próprios arsenais ou mesmo manifestado sincero desejo em fazê-lo. A intervenção militar na Tchecoslováquia em 1968 sepultou este breve flerte soviético. Mesmo Nasser, que podia apenas contar com a URSS contra Israel, permaneceu em silêncio. A “Doutrina Brejnev” isolou os soviéticos. Tito comparou a intervenção tcheca à agressão norte-americana contra o povo vietnamita e à israelense contra os árabes.
Uma nova conferência foi organizada em Lusaka, Zâmbia, em 1970. Naquele ano, o Oriente Médio como um conflito da Guerra Fria não se tornou um tema central das discussões. O próprio Nasser não pôde comparecer. Naquele verão, o “Setembro Negro” explodiu na Jordânia. As vítimas da “Nakba” levantaram-se contra os opressores árabes. Em 1948, Cisjordânia e Faixa de Gaza que, pelo plano de Partilha, seriam territórios palestinos, caíram em mãos jordanianas e egípcias, respectivamente. Após 67, quem não havia fugido para Jordânia ou Líbano, deixava a Cisjordânia. Vinte anos haviam passado desde a tragédia (“Nakba”) e a situação se deteriorava. No dia 6 de setembro, radicais palestinos entraram em conflito com o exército jordaniano. Nasser foi chamado a tentar um acordo diplomático entre os grupos em disputa.
O armistício cedido no fim daquele mês foi o último dos feitos do líder egípcio. No dia seguinte, o pai dos movimentos pan-arábico e não-alinhado, o aclamado herói da Revolução de 1952 sofreu um ataque cardíaco fulminante. Seu sucessor, Anwar Sadat, compreendeu que as políticas soviéticas não levavam a uma conclusão do conflito árabe-israelense. Em 1972, cortou relações com a URSS e aproximou-se do presidente americano Richard Nixon. Os americanos estavam com os pratos cheios no Vietnã. Preso entre um conflito emperrado e a Guerra Fria na região, Sadat resolveu novamente atacar Israel, forçando a questão na agenda internacional. A quarta Conferência se encontrou na Argélia apenas um mês antes do início da guerra do Yom Kipur, e Sadat buscava aliados. De fato, livrar-se da Guerra Fria no Oriente Médio foi uma estratégia vitoriosa. Fora o esforço diplomático americano entre Israel e Egito, que ajudou a desatar as tensões militares existentes no Sinai desde 1967. Por fim, Sadat capitulou e apertou as mãos de Menachem Begin em Camp David em 1979, perante um complacente Jimmy Carter. Por fim, o Movimento Não-Alinhado não foi capaz de ajudar em nenhum aspecto na crise do Oriente Médio.
O Fracasso
O provável é que o fracasso dos não-alinhados apenas refletiu o fracasso dos projetos nacionais de seus próprios membros. Cada um dos “Cinco Pais” do Movimento tinha seus próprios ideais nacionais que o projetariam no Sistema Mundial como Estados soberanos e fortes. Kwame Nkrumah de Gana, o “Lenin africano”, desenvolveu o pan-africanismo. Jawaharlal Nehru da Índia, o movimento pan-asiático, e Gamal Abdel Nasser, o pan-arabismo. De certa forma, a “Democracia Guiada” do indonésio Sukarno e a “Fraternidade e Unidade” de Josip Broz Tito foram tentativas singulares para dois países multinacionais em diferentes realidades. A percepção de que tais objetivos nacionais não seriam alcançados sozinhos, tampouco com a ajuda de quaisquer das Grandes Potências, levou os “Cinco” à celebração da solidariedade recíproca em 1961. Entretanto, os seis anos seguintes testemunharam muitas mudanças. Nehru morreu três anos depois e seu país passaria as próximas décadas preocupado com seus vizinhos, China e Paquistão. Um golpe de Estado sepultou Sukarno em 1967, falecido em 1970, encarcerado. No mesmo ano, morreu Gamal Nasser – apesar de seu projeto pan-arábico já ter sucumbido anos antes em face de disputas internas e externas. Um ano antes, Nkrumah fora retirado do poder por Emmanuel Kwasi Kotoka, durante uma visita de Estado ao Vietnã do Norte e China. Morreria em Bucareste, Romênia, em 1972. Tito tinha seus próprios problemas.
Por fim, as “Cinco Fronteiras” do não-alinhamento possuíam suas próprias dificuldades fronteiriças. Enquanto Nasser nacionalizava Suez, Tito preocupava-se com a crise húngara. Em 1973, quando o Egito buscava trazer pela última vez a atenção mundial à crise no Oriente Médio, Índia fabricava sua primeira bomba nuclear, fazendo frente aos chineses, enquanto Tito escrevia uma nova Constituição para a Iugoslávia. Por fim, a capitulação era o único caminho aberto a Sadat em 1979.
O Movimento Não-Alinhado sobreviveu à queda do sistema de alinhamentos.
O bloco soviético ruiu, mas isso não implicou o fim da história, tampouco o alinhamento incondicional aos vitoriosos Estado Unidos.
O crepúsculo da Guerra Fria assistiu à emergência de blocos econômicos de poder, regionais e multilaterais. No Oriente Médio, a força dos petrodólares se mostrou mais frutífera que as tentativas de pressão política. Os não-alinhados possuem atualmente dois terços das cadeiras da ONU, mas nenhum país no Conselho de Segurança. Por fim, em 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) se provou mais eficaz que a busca de alianças pelos não-alinhados de Sadat. O mundo não seria mais o mesmo.
Sobre o autor:
Ariel Pires de Almeida é mestre em História Iugoslava pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Belgrado.