Diego Gebara entra no mundo da música árabe e nos conduz pelas posições políticas da banda libanesa mais famosa dos últimos tempos

Diego Gebara

O palco do La Cigale é um dos mais tradicionais de Paris, situado ao pé do boêmio bairro de Montmartre e vizinho das ruas libidinosas do Pigalle, e é lá onde bandas em ascensão do mundo todo costumam se apresentar pela primeira vez na capital francesa. No último dia 8 de outubro, não foi diferente, o público se aglomerava na calçada estreita para passar pela segurança. No meio da multidão, entre pardons e mercis, escutavam-se shukran e yalla, palavras que entregavam a presença maciça da enorme diáspora árabe da cidade. Libaneses, franceses, argelinos, os fãs rapidamente tomaram a pista e o mezanino e, após uma curta espera, uma dançante linha de baixo introduziu a apresentação da maior banda árabe da atualidade, Mashrou’ Leila.

 Formada em meados dos anos 2000 no campus da Universidade Americana de Beirute, a banda seguiu os passos de toda uma geração de músicos alternativos que surgiram após o fim da guerra civil no Líbano. Centro de interseção, coexistência e crises entre diferentes culturas, o país acabou sendo solo fértil para o pop independente e politizado do Mashrou’ Leila, que desde então já passou pelos maiores festivais da região, da Tunísia aos Emirados Árabes, do Egito à Turquia.

As letras cantadas em árabe abordam intolerância religiosa, violência e, naturalmente, liberdade sexual, já que o vocalista Hamed Sinno, que lidera o grupo e se tornou um verdadeiro sex symbol entre os jovens da região, é abertamente gay. 

 O show que conferimos na capital francesa fez parte da última turnê europeia da banda, que ainda passou pela Itália e por diversas cidades da Alemanha. Assim que entrou no palco, Hamed pediu desculpas por seu francês horrível e seguiu se comunicando em inglês com a plateia, até que um fã gritou “fala árabe!”, e foi prontamente repreendido por ele: “Tem gente que não fala árabe aqui, vamos respeitar.” Ao alternar músicas cantadas em árabe com frases em inglês, a banda diminui a barreira linguística e acena para sua nova base de fãs na Europa e América do Norte. Meses antes, durante a primeira turnê norte-americana, eles passaram por Nova York, Toronto e São Francisco, cidade berço do movimento LGBT no mundo. 

Os debates sobre gênero e sexualidade estão presentes em diversas canções da banda, bem como na maneira como os seus membros se apresentam.

No palco, os momentos de sedução entre os músicos são constantes, o vocalista rebola, vai até o chão e empolga ao relembrar as polêmicas que a banda já protagonizou. Antes de cantar os mundanos versos de “Djiin”, “vou afogar meu fígado em gim / em nome do pai e do filho”, ele relembra: “Essa música fez a gente ser banido da Jordânia… porque, bem… dane-se a polícia!”

 Em abril de de 2016, uma apresentação da banda foi cancelada em Amã, a capital jordaniana. Oficialmente, o Ministério do Turismo local informou que o show não estaria à altura do anfiteatro que daria lugar ao evento. Porém, logo após, foi noticiado que pressões políticas relacionadas ao teor das músicas e aos ideais do grupo teriam sido o real motivo do ocorrido. O caso chegou a ser noticiado na mídia internacional e repercutiu nas redes sociais, onde fãs indignados denunciaram a censura cada vez mais evidente. Atualmente, cancelamentos como esse são mais raros por causa do sucesso da banda, mas Hamed contou para uma rádio canadense que, mesmo após terem se tornado uma referência internacional para a música do Líbano, alguns problemas ainda ocorrem em seu país de origem: “Em 2014, fomos fazer um show em uma cidade libanesa chamada Zouk, que é predominantemente cristã, e tentaram cancelar a apresentação porque homossexuais não deveriam pisar em solo cristão. O que acho interessante, pelo fato disso não se encaixar na narrativa ocidental em que a homofobia é algo islâmico, quando não é. É sobre um conservadorismo mais amplo, fundamentalismos mais gerais da região.”

 Além da religião islâmica não ser a única responsável por esses obstáculos, se enganam os que pensam que as dificuldades da banda se limitam às apresentações em países árabes.

A primeira turnê norte-americana do Mashrou’ Leila foi adiada repetidas vezes e só aconteceu em 2015. Tudo isso por causa da dificuldade em conseguir os vistos necessários para as apresentações. Mesmo depois de muita espera pelos documentos, a banda teve que tocar desfalcada nos dois primeiros shows do tour, porque o violinista Haig Papazian não conseguiu os papéis a tempo. Apesar dos obstáculos, os shows estão sempre lotados e em Paris não foi diferente. Os ingressos acabaram semanas antes do evento, que aconteceu menos de um ano após o atentado que matou dezenas de jovens no Bataclan, outra tradicional casa de shows da capital francesa. Por esse motivo, a violência e a intolerância, temas de tantas músicas da banda, foram condenadas em muitos momentos da apresentação. Antes de interpretar a irônica “Maghawir”, Hamed faz um discurso ironizando “garotões com armas e pauzões” e completou afirmando “como o quão violenta pode ser a masculinidade”. A música foi escrita após dois tiroteios que fizeram jovens vítimas durante a noite da capital libanesa e condena o machismo e o porte de armas no país. Um pouco mais adiante, o alvo é a homofobia, criticada em “Tayf”, música escrita após a violenta interdição de uma badalada boate gay do subúrbio de Beirute. Mas há momentos menos solenes, como a erótica execução de “Kaalam”, música que narra um flerte ousado com os versos “se seu toque for tão belo quanto o seu jeito de dançar, então chega perto / o inferno está debaixo da minha pele e suas mãos estão frias / e aqueles ignorantes barbudos não aprovam a gente, estão olhando para nós com suas sobrancelhas raivosas”.

 Durante os shows, a liberdade e a igualdade dominam o discurso da banda, que também apoia outras causas fora dos palcos.

Poucas semanas após a apresentação em Paris, os músicos embarcaram em um veleiro do Greenpeace para gravar um clipe de uma versão modificada de um de seus sucessos. Originalmente, “Falyakon”  fala sobre questões da juventude e frustrações, mas, após ter a sua letra alterada com a inclusão de versos como “o sol nos une” e “a estrada vai nos proteger ou nos destruir”, o hit virou um hino em defesa da produção de energia solar no mundo árabe. Antes disso, no primeiro semestre de 2016, os membros da banda apoiaram abertamente o Beirut Madinati, movimento político que aposta no municipalismo e propôs uma lista independente para as eleições municipais de Beirute. A iniciativa visava atacar a corrupção e o paternalismo dos partidos tradicionais dominantes, além de aproximar os cidadãos da democracia e de promover a igualdade de gênero na política. Apesar de não ter vencido as eleições, o movimento alcançou bastante visibilidade com o apoio da classe artística e conseguiu surpreendentes 40% dos votos.

 A postura política dentro e fora dos palcos chega até a ofuscar a música da banda. Uma rápida busca no Google revela que o Mashrou’ Leila já foi anunciado como “a voz dissidente do pop árabe”, ou como donos da “música que está mudando o Oriente Médio”. Hamed admite que o fato de muitos os considerarem porta-vozes de toda uma região é um fardo que pesa de vez em quando. Mas, pelo menos até agora, parece que o grupo está preferindo utilizar essa visibilidade para favorecer narrativas mais positivas e menos estereotipadas sobre o mundo árabe. Após o enorme sucesso do mais recente álbum, Ibn el Leil, Hamed afirmou que a experiência vitoriosa do grupo pode ser considerada um exemplo de como o Oriente Médio não é tão conservador quando se trata de grande parte dos temas abordados pela banda e que, provavelmente, o fato de esses assuntos serem abordados é exatamente o que desperta o interesse por eles na região. 

 De volta ao La Cigale, o show lotado chega ao seu clímax quando a banda toca um de seus maiores sucessos, “Lil Watan”, que em português significa “para a nação”, o nome oficial do hino nacional libanês. Enquanto uma mulher executando passos de dança do ventre é projetada no fundo do palco, o público canta em uníssono “eles te ensinaram o hino e disseram que o seu sacrifício é bom para a pátria / eles te sedaram pela artéria e disseram que a sua apatia é boa para a pátria”. A melodia dançante da música contrasta com a letra pesada, mas não há muito tempo para problematizar. Instantes depois, o som do violino se mistura com os sintetizadores e o refrão faz o convite final: “chega de sermão e vem dançar comigo por um momento / para de ser blasé e vem dançar comigo”. Todos obedeceram às ordens e não restou nenhum parisiense blasé no meio de tanta empolgação.

SOBRE O AUTOR:

Diego Gebara é descendente de sírios e libaneses. Jornalista formado pela ECO-UFRJ, trabalhou com o Universal Channel, SyFy e Al Jazeera English.

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