A pesquisadora Kelen Pessuto descortina imagens curdas ao apresentar um pouco da complexidade e riqueza de um cinema diaspórico

Por Kelen Pessuto 

Quando digo que meu objeto de pesquisa no doutorado é o cinema curdo, as pessoas questionam: “Quem são os curdos?” “Como um povo que não possui Estado nem bandeira oficial pode possuir um cinema para chamar de seu?” Assim, nasceu este artigo, com o intuito de esclarecer a respeito desta cinematografia que vem conquistando prêmios mundo afora, mas permanece ignorada, como sendo parte de um cinema curdo, pela maioria do público.

Os curdos compreendem o maior povo sem Estado do mundo, que compartilha a mesma língua, uma mesma cultura e mesma origem, composto por mais de vinte e cinco milhões de pessoas.

Ocupam uma região que denominam Curdistão, com cerca de quinhentos mil quilômetros quadrados. Seus sete mil anos de história é a história de uma resistência. Resistiram às invasões (persa, otomana) e às guerras. Sua mais recentes resistências são contra o governo turco, por causa do processo forçado de assimilação; contra a invasão do DAESH (Iraque e Síria) e a repressão no Irã. Os curdos não são turcos nem árabes nem persas, formam sua própria etnia, cujas origens são incertas.

Sua divisão atual ocorreu após a 1ª Guerra Mundial: o Curdistão do Norte está sob domínio do governo turco; o do Sul encontra-se no Iraque, já a parte ocidental na Síria e a oriental no Irã. A recusa dos países “dominadores” ou “hospedeiros”- como os próprios curdos se referem – pela independência do Curdistão se dá, principalmente, por ser uma região rica em petróleo, água potável e cereais.

O povo curdo não busca construir um Estado-nação, pois a ideia de Estado está ligada ao capitalismo e ao sexismo, mas sim aspiram pelo Confederalismo Democrático, uma ideia de autogoverno, horizontal, onde a população está envolvida no processo de debate e discussão baseado na igualdade de gênero e na sustentabilidade.

O cinema curdo é uma forma de resistência deste povo, uma maneira de mostrar ao mundo como vivem e como sobrevivem, seja no próprio Curdistão ou como refugiados na diáspora.

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Um cinema próprio

O que podemos chamar de cinema curdo? Como os filmes são realizados em diversos países – Irã, Iraque, Turquia, Síria e na diáspora – é difícil classificar qual é curdo e qual não é, pois nem todos os filmes produzidos dentro desses países são curdos. A língua, por exemplo, não é um fator determinante para qualificar este cinema, pois a maioria das películas não foram realizadas no idioma curdo, por causa da interdição e da marginalização da língua nos países “hospedeiros”.

A origem do diretor não pode ser considerada como um coeficiente de classificação, pelo fato de alguns diretores que não possuem origem curda realizarem filmes na região ou sobre o povo curdo, como o caso de Abbas Kiarostami, que realizou, em 1999, “O vento nos levará”, nas montanhas curdas do Irã; e de Samira Makhmalbaf, que fez “O quadro Negro” (2000) também na região. São filmes que podem ser classificados como curdos, mas não são feitos por realizadores curdos.

Mehmet Aksoy, organizador do London Kurdish Film Festival, reconhece que “se alguém se sente curdo, e coloca um espírito curdo no filme, eu posso chamar de cinema curdo”. Aksoy, quando questionado sobre os parâmetros de seleção dos filmes, sobre quais deles se encaixam em uma definição do cinema curdo, afirma que são filmes que representam experiências curdas. Sua luta pela sobrevivência entre guerras e /ou fronteiras impostas é o maior exemplo desta experiência.

Alguns parâmetros são utilizados por mim para categorizar esta cinematografia: são filmes que abordam a identidade curda, sua cultura, sua vida em sociedade. Alguns temas são recorrentes nesses filmes, como a fronteira, a memória do Anfal, o exílio, a escola, a infância, a vida como imigrante, a música, a guerrilha curda e a luta contra o DAESH. Embora alguns filmes não se refiram explicitamente ao Curdistão, há alguns elementos que nos indicam se tratar deste povo, como por exemplo, o uso das vestimentas, do lenço curdo, a presença das montanhas (grande símbolo curdo), canções curdas, o tema da fronteira etc. Como a população curda é dividida por fronteiras impostas, que chegam a dividir até mesmo famílias, a fronteira é o tema mais abordado nesta cinematografia.

Filmes como “As crianças de Diyarbakir” (dir. Miraz Bezar, 2009), “Bekas” (dir. Karzan Kader, 2012), “Tempo de embebedar cavalos” (dir. Bahman Ghobadi, 2000) e “Tartarugas podem voar” (dir. Bahman Ghobadi, 2004), retratam a vida de crianças órfãs que, no meio das guerras e conflitos, batalham pela subsistência.

O Anfal, um dos maiores massacres que o povo curdo viveu, ocorreu na década de 1980, no norte do Iraque. É reconhecido como um genocídio do povo curdo, perpetrado por Saddam Hussein, onde foram utilizados tanques, bombas, fuzis, destruição de vilarejos e armamento químico, e que matou mais de 180 mil pessoas. Como uma espécie de homenagem às vítimas e alerta sobre esta tragédia, filmes como “Saddam’s Mass Graves” (Jano Rosebiani, 2004), “Al-Anfal, in the name of Allah, Ba’ath and Saddam”, (dir. Mano Khalil, 2005), “As flores de Kirkuk” (dir. Fariborz Kamkari, 2010), “Memories on Stone” (dir. Shawkat Amin Korki, 2014), “Steel Nameplate” (dir. Zanyar Azizi, 2014), “Seven Stone” (dir. Fatemeh Dastmard, 2014), “1001 Apples” (dir. Taha Karimi, 2013), entre outros, foram realizados.

A guerrilha curda é um tema frequente também nesses filmes. O PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão, foi fundado em 1978 por Abdullah Öcalan. Apesar de ser considerado um partido de resistência pelos curdos, é listado como uma organização terrorista pela Turquia, EUA e UE, por causa de seu engajamento na luta armada. O PKK tem duas brigadas: o YPJ e o YPG. YPJ é a sigla para Yekineyên Parastina Jin – Women’s Protection Units, um movimento feminista que luta por liberdade e igualdade; enquanto que o YPG, principal grupo armado de Rojava, se denomina People’s Protection Units. Ambos atuam no sul do Curdistão, lutam no Iraque e na Síria contra o DAESH e conseguiram liberar algumas cidades que estavam sob seu domínio, como Sinjar e Kobane.

Muitos filmes realizados atualmente focam na luta desses grupos. “I flew, you stayed” (dir. Müjde Arslan, 2012) é um documentário em primeira pessoa sobre a busca da cineasta pela memória de seu pai, que foi embora de casa, quando ela ainda era bebê, para fazer parte da guerrilha nas montanhas curdas, onde cuidou das crianças refugiadas.

Outros filmes, tanto de ficção quanto documentários, foram e estão sendo realizados sobre os grupos de resistência curdos, sobre os mártires, presos políticos ou ativistas: “Hope” (dir. Yuksel Yavuz, 2013), “Come to my voice” (dir. Huseyin Karabey, 2014), “Dancing for change” (dir. Shahrzad Arshadi, 2015) e “Meanwhile” (dir. Savas Boyraz, 2014) são alguns exemplos.

As atrocidades cometidas pelo DAESH e a luta da guerrilha curda contra esse grupo fizeram-se presentes em uma gama de filmes realizados no ano de 2015, como “Before Dawn” (Ömer Leventoglu e Ishan Kaçar, 2015), “Number 73” (dir. Rekesh Shahbaz, 2015) e “N” (dir. Yasaman Sharifmanesh, 2015), além de figurarem em diversos vídeos espalhados pela rede.

Screenshot do vídeo The YPJ, de Ari Murad, 2016

A estética dos filmes de ficção curdos, com exceção dos vídeos mencionados anteriormente, é parecida. Todos são filmados em locações reais, muitos utilizam atores não profissionais, pouca ou nenhuma iluminação artificial e são realizados com baixo orçamento (muitos contam com coprodução europeia).

O primeiro filme a retratar os curdos foi “Zarê” (dir. Amo Bek-Nazaryan), filmado na Armênia, e lançado em 1926. O filme é sobre uma história de amor que se passa em uma tribo nômade da região. Depois de seu lançamento, houve uma lacuna muito grande no cinema curdo, até que, na década de 1980, surge na Turquia quem viria a ser reconhecido como precursor deste cinema, o ator e cineasta Yilmaz Güney.  

A vida no exílio

Hoje, a maioria dos diretores vivem na diáspora, principalmente, na Europa, o que não os impede de realizar seus filmes sobre a questão curda, seja para retratar a experiência no exílio, os problemas atuais ou o passado.

Diretores como Bahman Ghobadi, Hishan Zaman, Fariborz Kamkari, Müjde Arslan, entre outros, tiveram que sair de sua terra para continuarem suas carreiras na Europa.

“Letter to the King” (2014), de Hisham Zaman, é uma ficção sobre a vida em um campo de refugiados em Oslo. Bahman Ghobadi, após ter deixado o Irã, realizou “Rhino Season” (2012), sobre a prisão do poeta curdo Sahel. O diretor acaba de finalizar “A Flag Without a Country” (2015). Com uma extensa lista de filmes a retratar a questão curda, podemos falar em uma cinematografia própria, na qual o cinema é utilizado pelo povo curdo como uma forma de documentar suas experiências e sua realidade e de resistir.

Sobre a autora:

 

Kelen Pessuto é atriz, cineasta, mestre em Artes Cênicas pela Unicamp e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, com pesquisas sobre cinema curdo e iraniano.

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