A pesquisadora Muna Omran relata a sua experiência no confronto entre o Líbano imaginado na diáspora e a crueza da realidade que encontrou em terras libanesas
Por Muna Omran
Quando se cresce em meio às narrativas da tradição oral familiar, que destacam a beleza do Líbano e, em especial, a da cidade de Trípoli, ao norte do país, onde o convívio pacífico dos diversos grupos religiosos era a marca do local, se constrói um espaço idílico e seguro para se visitar. Esse universo imaginado criado no meu universo pessoal, mais tarde, foi confrontado e ratificado com as leituras de obras literárias de autores diaspóricos no Brasil, Raduan Nassar, Milton Hatoum e Salim Miguel. Com isso, conhecendo o país ou as cidades libanesas criados pela narrativa familiar, fica possível confrontar os dois universos: o real e o imaginado, e pode-se pensar a história e a cultura do Líbano, mas não sem abandonar a ambivalência existencial que boa parte dos filhos da diáspora vivem, “(…) exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ‘ chegada’ sempre adiada”, nas palavras de Stuart Hall.
Se a imigração provoca a criação de uma comunidade imaginada, ser um produto da diáspora, na maioria das vezes, não livra da ambivalência existencial que se abate em boa parte dos descendentes. Sendo intelectual, essa ambivalência ganha dimensões maiores, pois há a obrigação redobrada de, na maior parte do tempo, permanecer em constante estado de vigilância. Como define Edward Said, “Mesmo que não seja realmente um imigrante ou um expatriado, ainda assim é possível pensar como tal, imaginar e pesquisar apesar das barreiras, afastando-se sempre das autoridades centralizadoras em direção às margens, onde se podem ver coisas que normalmente estão perdidas em mentes que nunca viajaram para além do convencional e do confortável.”
Em se tratando do Líbano, convém lembrar que a conjugação de fatores sócio-culturais e econômicos provocou o processo diaspórico em massa do país para o ocidente e, como consequências desse momento, destacamos dois aspectos importantes. O primeiro deles foi o contato com os ideais liberais europeus, promovendo o nacionalismo local, e, o segundo, a solidificação de uma classe média urbana que retornava do ocidente comprometida na formação de um Líbano moderno.
Porém, há que se destacar que, nas narrativas em que se constrói a consciência coletiva dos imigrantes, o meio rural dominava a cena, pondo-se em destaque a figura do camponês, visto como uma reação ao discurso colonial urbano. Símbolo da autenticidade e da virtude, o homem do campo personifica a estética e os ideais nacionalistas, contrapondo-se ao colonialismo europeu. Com isso, a autenticidade libanesa se formou em áreas não urbanizadas, como as da região do Monte Líbano, mas, paradoxalmente, o processo de independência libanês tem raízes urbanas, uma vez que os imigrantes tiveram contato direto com o pensamento liberal europeu. De um lado, o camponês é o símbolo da identidade libanesa, de outro, o princípio de cidadania se constrói nas bases urbanas, e a identidade linguística tinha na língua árabe seu ponto de partida. De acordo com Nehme Hoda, “Les chrétiens arabes se mettent à la conception d’une citoyenneté fondée sur le patrimoine linguistique arabe. Ils construisent un savoir en matière de nation, de citoyenneté, de charte de droits de l’homme, de démocratie, de société plurielle et d’un vivre ensemble harmonieux. Ils ont recours à la langue arabe, porteuse du legs culturel arabe dont l’islam fait partie, comme paramètre identitaire et non la religion.”
Com a queda do Império Otomano e a redivisão do mundo árabe entre as potências europeias, o processo de independência libanês consolida-se em todas as classes sociais. As lideranças rurais do Monte Líbano, a classe média urbana, boa parte formada por imigrantes que retornavam para a terra natal, e a unidade, ainda que passageira, no parlamento libanês, se uniam em nome do nacionalismo contra a opressão francesa, todos “em torno de uma causa comum: algo que dificilmente voltaria a acontecer”, como mostrou Murilo Meihy em seu livro “Os Libaneses”. Com a crise instaurada e sem alternativa para solucioná-la, os franceses foram obrigados a reconhecer a independência do Líbano a 22 de novembro de 1943.
Apesar da diversidade confessional e alguns conflitos, a coexistência era a marca libanesa em cidades como Trípoli. No entanto, a Guerra Civil Libanesa (1975-1990) interrompeu essa singularidade e, apesar dos inúmeros fatores internos que a provocaram, dentre os quais se destaca a presença palestina no país (o Líbano abriu suas fronteiras para as refugiados palestinos que ao se instalarem lá criaram um Estado paralelo em solo libanês), não se nega a entrada de vários atores externos que acirraram os ânimos locais. Os primeiros protagonistas do conflito foram a Síria e a Arábia Saudita, seguidos por: Israel, Estados Unidos e Irã. Este, após a Revolução Islâmica de Khomeini, disputava a liderança da Umma (comunidade) islâmica no Oriente Médio com a Arábia Saudita.
Assim, a sangrenta Guerra Civil Libanesa fez com que a intervenção externa em assuntos internos se legitimasse na política libanesa. Os estados árabes abusavam do sistema permeado de correntes ideológicas transnacionais e usavam o Líbano como uma arena para concorrerem à liderança regional e, em paralelo a essas questões, o despertar da nação islâmica se fazia e se consolidava cada vez mais no final do século XX.
Se, por um lado, o radicalismo dos movimentos sunitas da Arábia Saudita expandia-se em todo o mundo muçulmano, por outro, o xiismo iraniano procurava ampliar as fronteiras da Revolução liderada por Khomeini. Paralelamente, havia a fragilidade do estado libanês provocada pela guerra civil – o país, então já dominado pelo sectarismo religioso, tornava-se um campo fértil para que a batalha por uma construção de uma identidade muçulmana ocorresse, mesmo por caminhos divergentes e antagônicos, e durante os quinze anos que durou a guerra civil o país perdeu o controle da situação. O sectarismo mostrava sua força criando regiões específicas para cada comunidade religiosa, com milícias próprias e aparelhadas administrativamente. Líderes locais se alinhavam aos sírios ou aos israelenses ou, ainda, a outros atores regionais, bem como internacionais. No país de apenas 10.452.km2 , a institucionalização do sectarismo miliciano tornou-se parte de uma crescente economia de guerra, apoiada financeiramente pelos atores externos. As milícias controlavam os direitos aduaneiros, os portos, impostos indiretos e vários meios de comunicação de massa, como rádios, jornais e canais de TV.
Finalmente, em 22 de outubro de 1989, após inúmeras tentativas de um acordo de paz que atendesse a todos os envolvidos, foi assinado o acordo Ta´if. Na realidade, o que houve foi a reconfiguração do Pacto Nacional de 1943, reestruturando a representação política entre os grupos confessionais, de modo que, a médio e longo prazos, os problemas engendrados pelo sectarismo diminuíssem.
Esse Acordo, além de ser político, visava ainda a reconstrução constitucional do sectarismo existente sob supervisão de mediadores regionais e internacionais, alguns dos quais estavam diretamente envolvidos no conflito, como o caso da Síria.
O ano de 2005 foi decisivo para a política libanesa, pois, novamente, houve uma unidade entre a população libanesa, após o atentado a bomba num dos bairros mais nobres de Beirute, matando 21 pessoas, entre elas o primeiro ministro Rafik Hariri. Milhares de libaneses foram às ruas para exigir a retirada das tropas sírias.
Apesar da saída das tropas sírias, a política do país vizinho continuou a afetar as terras libanesas. Em 2011, é iniciada a Guerra Civil Síria, pedindo mais liberdade política e a renúncia do presidente Bashar Al-Assad. A Síria, há cinco anos, vive um sangrento e bárbaro conflito, em que os mesmos atores da Guerra Civil Libanesa retornam à cena – Arábia Saudita, Estados Unidos, Rússia e Irã – incluindo ainda a Turquia. Lamentavelmente, esse conflito não poderia deixar de afetar o Líbano, que hoje agrega mais de 1.785.000 refugiados sírios, gerando assim inúmeros problemas sociais e econômicos para o país.
Um desses problemas envolve o aumento da guerra sectária entre sunitas e alauítas (grupo religioso minoritário, uma das ramificações do xiismo), especialmente em Trípoli, com ataques sucessivos entre os dois grupos. Porém, não há como falar objetivamente do problema que Trípoli vive sem evocar o sentimento de exílio que habita em cada um dos filhos da diáspora. Conforme a definição de Said: “um náufrago que, de certo modo, aprende a viver com a terra, não nela; ou seja, não como Robinson Crusoé, cujo objetivo é colonizar sua pequena ilha, mas como Marco Polo, cujo sentido do maravilhoso nunca o abandona e que é um eterno viajante, um hóspede temporário, não um parasita, conquistador ou invasor.”
Ao chegar a Trípoli, a cidade onde vivi sem nunca conhecer, provocou-se o deslumbramento de pisar em solo desconhecido, mas extremamente íntimo. No entanto, ao mesmo tempo em que sentia o choque dos expatriados quando retornam ao seu país, aquela Trípoli que se apresentava para mim colidia com a minha Trípoli experienciada através das narrativas familiares. Nela nunca habitou o camponês patriótico do Monte Líbano, mas tinha uma população urbana que sabia conviver com os diversos grupos religiosos, como os cristãos ortodoxos, os muçulmanos alauítas e até mesmo os muçulmanos sunitas. A Trípoli imaginada e a real confrontavam-se diante de meus olhos; a Trípoli imaginada tinha uma população alegre onde as moças de família, em dias de festas religiosas ou feriados nacionais, iam aos cinemas que ficavam na praça de Al-Tall, ou ainda iam ao suq (bazar) comprar roupas, doces e, por que não, ouro; a real, uma cidade dividida, com raríssimos cristãos, localizados em sua maioria no bairro de Al-Mina.
Al-Tal
Vi uma cidade suja, empobrecida, sectária, amedrontada, abandonada pelo estado e repleta de refugiados sírios. Na Trípoli construída pela memória familiar, não havia religiosos radicais nem simpatizantes do Daesh, muito menos admiradores do governo islamita do turco Erdogan, não existiam tanques de guerra em suas ruas, nem prédios destruídos, muito menos ruas prontas para serem fechadas por barricadas e assim evitar o conflito sectário. A Trípoli que conheci não era dividida entre Bab Al-Tabbane, um campo de refugiados palestinos, e Jabel Mahsen.
Hoje, lá predominam os sunitas, poucos cristãos ortodoxos, um campo de refugiados palestinos e os alauítas, que em sua maioria se concentram no Jabel Mahsen. Neste bairro, vivem em torno de 40 mil famílias alauítas, pela disposição geográfica o local fica cercado por palestinos e libaneses sunitas, boa parte dos refugiados sírios que para lá se deslocam se instalam nas cercanias do bairro alauíta, vivendo especificamente no bairro de Bal Al-Tabbane, bairro anti-Assad, pró-Erdogan e pró-regime saudita. Quando há conflitos, palestinos (sunitas) se aliam ao habitantes de Bab Al-Tabbane, impedindo a chegada de socorro e alimentos para a população alauíta. No último cerco, em 2014, até a chegada do exército libanês, a população cristã maronita de Zgharta conseguia levar ajuda humanitária para os habitantes de Jabel Mahsen. No entanto, não queremos afirmar que todos os sunitas da região compactuam com o pensamento salafista que domina Bab Al-Tabbane.
Nas últimas eleições municipais, os candidatos apoiados pelo radicalismo religioso saudita foram vencedores. A presença do apoio wahhabita na região é comprovada pelas fotos, espalhadas nas ruas da cidade, do ministro da justiça libanês, Ashraf Rifi, um sunita de Trípoli, prestando reverência ao rei saudita.
Sendo maioria na região, o sectarismo sunita ataca constantemente Jabel. O mais intenso, pós-Guerra Civil, foi em março de 2014, o que levou o exército libanês a ocupar a cidade.
Os salafistas de Trípoli se reúnem na praça chamada hoje de Sahat Allah para protestarem contra o governo libanês, principalmente, contra a presença do exército na cidade e convocar a população sunita a hostilizar não só o exército como a população cristã e alauíta para ratificar o islã sunita na região, através das pequenas faixas em torno da praça. Segundo relatos locais, quando Erdogan venceu as últimas eleições, a praça foi tomada pelos moradores de Bab Al-Tabbane para comemorarem.
Vários fatores provocam o conflito. O que se vê, em princípio, é o forte sectarismo que domina a região, o ressentimento e os rancores que passam de geração para geração, acentuados com a Guerra Civil Libanesa, o abandono do Estado e o desemprego local, levando jovens a integrarem as milícias locais.
Para amenizar o conflito, o exército libanês montou barricadas entre os dois bairros e ocupou a cidade para evitar um grande derramamento de sangue. O que se sente nas ruas de Trípoli é o constante temor de que a qualquer momento um conflito sangrento se reinicie. A luta sectária no Norte do Líbano é presente no cotidiano de toda a população, a Trípoli que conheci pela memória familiar, onde um sol espalha seus raios, não condiz com a Trípoli que hoje vive sitiada pela constante ameaça de guerra e permeada por nuvens sombrias.
Para saber mais:
CHIARELLI. Stefania e NETO. Godofredo de Oliveira. Falando com estranhos – o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro:7Letras. 2016.
HALL. Stuart. APUD SANTIAGO. Falando com estranhos – o estrangeiro e a literatura brasileira. organização Stefania Chiarelli e Godofredo de Oliveira Neto. Rio de Janeiro: 7Letras. p.27.
MEIHY. Murilo. Os Libaneses. Rio de Janeiro: Editora Contexto. 2016.
PINTO. Paulo Hilu da Rocha. Árabes no Brasil – uma identidade plural. Rio de Janeiro: Editora Duas Cidades. 2010.
SAID. Edward. Orientalismo: O Oriente Como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia da Letras. 2005.
____________. Reflexões sobre o exílio. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 2003.
SALLOUHK. Et. Al.. The Politics of sectarism in postwar Lebanon. London: Pluto Press. 2015.
NEHME. Hoda. “Les differentes voies de la pensée politique arabe et islamique du XIX siècle à l’orée du XXI siècle”. In: Revista Eletrônica, Ipsis Libanis. www.icbl.com.br/ipsislibanis. Número 1. 2016.
Sobre a autora:
Muna Omran é pós-doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal Fluminense (UFF), professora colaboradora da pós-graduação em Estudos da Linguagem, da UFF, e Diretora Acadêmica do Instituto de Cultura Brasil Líbano ( ICBL). Pesquisa a diáspora sírio-libanesa no Brasil e sua representação na literatura.