O documentário “A Copa dos Trabalhadores” mostra as terríveis condições de vida e de trabalho dos imigrantes africanos e asiáticos no Catar da Copa do Mundo de 2022
Por Leila Lak
Em 2010, surpreendentemente para muitos, o Catar foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2022. Essa escolha fez com que o mundo todo olhasse para o país e para o flagelo dos trabalhadores migrantes cujo suor está construindo a Copa.
“Estou tendo uma vida difícil”, diz Calton, trabalhador que aparece no novo documentário “A Copa dos Trabalhadores” (“The Workers Cup”). “Isso não é vida, cara. Você sente que caiu numa armadilha, nunca consegue aproveitar o que a vida tem de bom.”
Dirigido por Adam Sobel e produzido por Rosie Garthwaite e Ramzy Haddad, o documentário faz um retrato inédito dos campos de trabalho do Catar, onde trabalhadores migrantes da Ásia e da África estão construindo a infraestrutura do torneio de 2022. O documentário, que recebeu o primeiro prêmio em Sundance, será apresentado durante toda semana a partir de segunda-feira, 24 de abril no festival “É tudo verdade”, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O filme é um retrato íntimo da participação dos trabalhadores na Copa dos Trabalhadores (Workers’ Cup), torneio estabelecido em 2013 em resposta às críticas que o Catar recebeu por conta dos maus tratos dispensados aos trabalhadores da construção civil. Qualquer pessoa que tenha vivido no Catar reconhece facilmente que é um feito inacreditável conseguir acesso a um grupo de pessoas que estão isoladas do resto da sociedade do Catar e do restante dos expatriados.
“Fui criado no Catar, sim,” disse o produtor Haddad, palestino-canadense que passou a maior parte da vida nesse pequeno estado do Golfo Pérsico, “mas será que eu conhecia o Catar tão bem até interagir com esse pessoal? Nem tanto. Foi como se tivéssemos entrado em um universo paralelo dentro do país; assim, entrei em contato com um outro lado do país que eu pensava conhecer muito bem.”
Atualmente, estima-se que haja 1,6 milhões de trabalhadores migrantes no Catar, cerca de 60 por cento dos habitantes do país. A esmagadora maioria é formada por homens que vivem em campos de trabalho. A vida para quem trabalha na construção civil é dura. Em 2015, a Conferência Internacional dos Sindicatos estimou que mais de 1000 trabalhadores migrantes morreram no período de um ano, embora o governo do Catar conteste esse número. Na realidade, muitos deles precisam da permissão do empregador para sair do país; grupos de direitos humanos dizem que isso equivale a trabalho forçado. O Catar implantou uma lei proibindo essa prática, mas a Anistia Internacional alega que há muitas brechas, fazendo com que a permissão para saída ainda seja usada.
“Quando chegamos, começamos a interagir com os personagens e tentamos abordar o filme nos termos deles, mas parecia que eles não estavam preocupados”, disse Sobel em uma conversa por Skype – ele estava em Chicago – sobre as questões de vida e morte que a imprensa do mundo todo publicou. “Eles estavam obcecados pelo isolamento que estavam passando, sofrendo com a pressão psicológica de viver sem família. Viver sem mulher. Como se eles estivessem lá para um único propósito e suas características humanas tivessem sido retiradas deles.”
A Copa dos Trabalhadores do Catar foi planejada para dar aos trabalhadores uma folga da rotina diária e para funcionar como um exercício de relações públicas das empresas envolvidas. As horas de trabalho são extenuantes, doze horas por dia, sete dias por semana. Embora a lei estipule que eles devem ter um dia de folga por semana, a maioria das empresas não permite. Nos meses de verão, a temperatura pode chegar a 50°C no Catar e, pela lei, os trabalhadores não devem trabalhar nessas condições, mas, novamente, a maioria das empresas de construção ignora essas regras. A equipe de filmagem teve acesso a uma das equipes da empresa de construção, a GCC. Haddad enfatiza que a empresa é uma das melhores no Catar, em termos de respeito aos direitos dos trabalhadores, mas a intenção do filme é mostrar que o padrão definido é muito baixo.
Os sujeitos vindos de Gana, do Quênia, do Nepal e da Índia abrem nossos olhos para sua existência e para a realidade de viver em campos de trabalho. Como diz um deles: “Pelo bem dos meus filhos, minha vida está sendo jogada fora.”
O isolamento dos trabalhadores é palpável ao longo do filme. O salário é uma miséria de 200 dólares por mês, sendo que a maior parte eles enviam para a família no país de origem. O Catar é conhecido por ser um lugar caro; então, mesmo que o toque de recolher seja às 22 horas, a única opção é ficar no campo, pois ir a Doha não é financeiramente viável.
Para Sobel, esse foi o aspecto mais desafiador do processo de fazer o filme. Nós saíamos dos campos e nossos apartamentos eram na cidade, um lugar onde nossos personagens tinham muita dificuldade de chegar”, disse ele. “Eu acho que nossos personagens sentiam essa injustiça e nós também, sabendo que a situação não era nada justa, que nós podíamos passar o dia inteiro filmando com eles no campo e, no final do dia, cada um ia para o seu lado.”
O filme captura lindamente as esperanças, os sonhos e as frustrações dos trabalhadores e, às vezes, com grande senso de humor, como quando um dos personagens tem muitas dificuldades para conseguir sair com uma mulher. Outros vivem de futebol, sonham com futebol; o único sonho do personagem principal é ser notado por um olheiro e fechar contrato com um clube. A Copa do Mundo paira majestosa sobre o filme. Ao contrário do Brasil, onde os manifestantes protestaram veementemente contra a Copa, esses trabalhadores, cujas vidas estão em suspenso para construir os estádios, não parecem se ressentir do evento.
Embora o mundo esteja discutindo se o Catar deveria ter sido escolhido para sediar a Copa, os trabalhadores não vivenciam esse conflito.
“Para mim, essa é a ironia que traz equilíbrio ao filme”, disse Sobel. “É que eles são tão fanáticos por futebol que, apesar de o torneio ser construído em cima do lombo deles, eles não conseguem deixar de amar o jogo.”
Talvez o maior sucesso do filme e o que faz com que a gente sinta que ele é universal, são os detalhes. Obviamente, a vida que os trabalhadores levam no Catar, como diz um personagem, é “infernal”, mas a triste realidade é que os trabalhadores têm poucas opções. Alguns saíram do Catar agora, mas outros estão querendo voltar, pois a pobreza e o desemprego tornam a existência em seus países insustentável. Para conseguir sustentar suas famílias, eles enfrentam novamente a perspectiva de desistir das próprias vidas e sonhos para criar a infraestrutura que vai abrigar o torneio de futebol mais amado do mundo.
SOBRE A AUTORA:
Leila Lak é jornalista, documentarista e Chefe de Reportagem da REVISTA DIASPORA.