O antropólogo Bruno Bartel expõe os acordos e desacordos entre a monarquia e as ordens sufis no Marrocos
Por Bruno Bartel
Processos históricos dos mais diversos se fazem presentes no Magreb (Marrocos, Argélia e Tunísia) desde o século VII, quando a religião islâmica foi introduzida através das conquistas árabes. Foi somente a partir da dinastia Almôada (1124 –1269), estabelecida no século XII e consolidada ao longo do século seguinte, no que seria hoje o Marrocos, é que se pode dizer que parte do Magreb pôde presenciar o desenvolvimento de uma elite e de um conjunto de instituições religiosas capazes de converter substancialmente a população ao islã. Nesse sentido, o papel do sufismo (tasawwuf) foi fundamental como força religiosa atuante sobre o destino da região devido ao seu papel político em um campo social marcado por disputas de poder.
O sufismo, dentro da tradição religiosa do islã, pode ser definido como a busca de uma experiência direta com Deus, ou Allah. Essa meta é considerada como a expressão de um processo longo de iniciação realizado por um indivíduo por meio de um caminho ou via mística (tariqa; pl. turuq), sob a orientação de um mestre (shaykh; pl. shuyukh). A base dessas experiências religiosas é induzida por performances rituais e o caminho sufi não consiste apenas em uma trajetória religiosa completamente intersubjetiva, mas também por fatores externos, pois exige que cada estado religioso (hal; pl. ahwal) experimentado pelo indivíduo esteja de acordo com as doutrinas e práticas transmitidas pelos textos, rituais e ensinamentos orais que compõem as diferentes tradições sufis.
O contexto do sufismo marroquino é caracterizado por três linhagens: a tariqa (caminho ou via mística) Chadhilia, fundada por Iman Chadili (1193-1278); a tariqa Quadiria, estabelecida por Moulay Abdelkader Jilani (1077-1166); e a tariqa Tijania, constituída por Sidi Ahmed Tijani (1735-1815). A partir das duas primeiras (Chadilia e Quadiria), existem dezenas de outras ramificações o que torna cada vez mais complexo o quadro dessas comunidades religiosas no país. O seguinte quadro demonstra a presença dos diversos grupos existentes no país.
Diversos exemplos ao longo do tempo destacam a capacidade de algumas dessas comunidades religiosas de: I) estabelecer relações de poder a partir do sistema de obrigações entre populações rurais; II) constituir acordos com sultões para o desenvolvimento de políticas locais, antes da experiência colonialista no país (portugueses, espanhóis e franceses); III) organizar movimentos anti ou pró-nacionalistas até o processo de independência do país em 1956; IV) instituir diálogos com os novos fluxos religiosos transnacionais em curso praticados por uma elite New Age marroquina com a Europa e a América do Norte; e V) promover uma imagem e um discurso público de tolerância frente ao avanço do salafismo [termo que reúne diferentes correntes reformistas, cuja ideia central é a volta às “origens” do islã], recente no país.
O sufismo marroquino foi apropriado pelo discurso nacionalista da monarquia alauíta (dinastia que governa o país desde 1666) desde a experiência do protetorado no país (1912-1956), fundamentado na construção de uma identidade própria centrada na figura da família real e, mais especificamente, do rei, através de sua caracterização como o “Comandante dos Crentes” (Imarat al-Mu’minin). Esse termo fundamenta a figura do rei como defensor da nação e protetor do islã por meio da ideia de uma instituição constituída com essa finalidade no país. Essa configuração é comumente explicada pela combinação e valorização de uma tríade baseada na ideia de um sufismo sunita, de um rito maliki e de uma doutrina asha’rita desenvolvida pela sociedade marroquina ao longo do tempo.
Isso relega ao monarca um papel fundamental na organização do campo religioso e político do país, assim como nas disposições das relações dos diversos agentes sociais que participam desses processos. É a partir dele que se pode pensar em distinções de status e relevância entre grupos sociais e as exigências por legitimação de determinados agentes religiosos, como no caso dos sufis. Ao invés de obter apenas vantagens junto a uma rede de privilégios que os conectam ao rei Mohammed VI (no poder desde 1999), os grupos sufis marroquinos procuram, ao seu modo, ser instrumentalizados em parte pelas instituições da monarquia, justamente para negociar os seus limites de inserção nas esferas de poder, garantindo-lhes assim uma autonomia perante o governo.
Além do papel de organização religiosa, as comunidades sufis atuam como agentes sociais no plano da política. Indivíduos ligados a distintas comunidades sufis ocupam cargos no governo, direta ou indiretamente, por meio de suas relações políticas com a monarquia marroquina. Em alguns casos, uma comunidade sufi pode ganhar maiores projeções na sociedade através da conversão de intelectuais ou artistas que, por intermédio do uso da imagem da via mística do sufismo, contribuem para fortalecer um projeto de expansão de suas redes políticas. A tariqa Qadiria Boutchichia, por exemplo, é a atual comunidade sufi com maior penetração política junto ao governo de Mohammed VI, justamente por sua projeção a partir do legado de conhecimentos do seu fundador, o shaykh Sidi Hamza al-Qadiri al-Boutchichi (1922-2017).
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A constituição das duas principais divisões sectárias do islã, o sunismo e o xiismo, foi fruto um processo iniciado logo após a morte do profeta Muhammad e que se consolidou por volta do século IX, período que se iniciou a ocupação árabe nos territórios que viriam a ser o Marrocos.
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Fundado por Malik ibn Anas (711-795), o malikismo é conhecido por promover a adaptação das regras islâmicas a partir dos costumes e contextos locais.
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A partir da tradição legada de Abu al-Hasan al-Ash’ari (m. 935), a doutrina asha’rita pregava uma teologia racionalista que aceitava a transcendência da razão divina. Em contrapartida, os sufis pregavam uma abordagem intuitiva e experiencial à verdade divina.
A indicação, em 2002, de Mohammed Tawfiq, professor universitário e membro da Boutchichia, ao Ministério de Habous e de Assuntos Islâmicos expressou uma mudança significativa no campo político-religioso, visto que seu antecessor, Abdelkebir M’Daghri Alaoui (que ocupava o cargo desde 1985), era tido como um representante próximo do salafismo. Além disso, a alocação de diversos professores acadêmicos, discípulos de Sidi Hamza, em diversos departamentos de Estudos Islâmicos das universidades marroquinas representou uma ocupação das linhas educativas religiosas criadas no interior dessas instituições acadêmicas que, desde 1979, competem com as demais instituições tradicionais de ensino islâmico. Neste sentido, a tariqa Boutchichia projetou uma consolidação de seu status no espaço público com relação aos demais grupos sufis do país e, principalmente, no campo religioso, por meio do aval da monarquia marroquina.
Dois dias após a morte de Sidi Hamza, em janeiro de 2017, o Ministério de Habous e de Assuntos Islâmicos divulgou aos meios de comunicação do país a informação de que, no palácio real de Casablanca, Mohammed VI havia recebido o filho de Sidi Hamza, Jamal Eddine al-Boutchichi al-Qadiri, para dar as suas condolências. Nomeado como sucessor pelo próprio shaykh, meses antes de seu falecimento, o filho de Sidi Hamza destacou os esforços do monarca em preservar as contribuições do sufismo desenvolvido no país, definido como um “patrimônio espiritual nacional”. Além disso, o próprio Mohammed VI fez questão de citar as contribuições e o legado do renovador das tradições da tariqa Boutchichia como um homem de tolerância, moderação e respeito aos valores constituídos ao tipo de islã promovido por seu governo.
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O Ministério de Habous (termo islâmico relacionado à legislação de propriedade da terra) e de Assuntos Islâmicos foi criado pela monarquia marroquina em 1955 como forma de dispor de um instrumento burocrático sobre a religião do país. Essa instituição visa controlar as práticas religiosas públicas por meio de um sistema oficial fixando as suas normas, condutas e limites.
Essas demonstrações públicas de afinidade entre Mohammed VI e a tariqa Boutchichia ocorrem desde as manifestações de 2011 em Casablanca, quando milhares de seus membros, em conjunto com parte da população marroquina, deram o seu apoio ao referendo sobre as reformas constitucionais propostas por meio das concessões políticas assumidas por Mohammed VI em plena Primavera Árabe. Denominados pela revista “Jeune Afrique” como “os sufis de Sua Majestade”, a visibilidade pública da tariqa Boutchichia demonstrou a sua força política perante os demais setores conservadores do país, tais como os seus diversos grupos de orientação baseado no salafismo. Além disso, muitos de seus membros criticaram, nestas manifestações, a conduta do “Movimento 20 de Fevereiro” no país – movimento social contrário às mudanças constitucionais propostas pelo rei por considerar as ações do monarca meramente uma “fachada” que visava reduzir a pressão popular por reais alterações no contexto social marroquino, como as ondas de reivindicações que vinham ocorrendo em outros países como, por exemplo, na Tunísia e no Egito –, os taxando de “marionetes dos países ocidentais”.
Essas possibilidades de intervenção na vida pública, pertencentes a diversas comunidades sufis no Marrocos, também situam o grau de relação desses grupos religiosos com o governo. Discursos públicos oficiais são amplamente difundidos na mídia impressa ou televisiva para comumente descrever a relação histórica entre os líderes da vida política e os líderes sufis na construção e promoção da estabilidade social do país. O governo marroquino também procura se aproveitar dessas situações de aproximação a esses grupos religiosos para a implementação de uma política de controle sobre seus eventos religiosos junto à sociedade, bem como para estabelecer os limites de inserção dessas comunidades sufis por meio da ocupação de cargos ou do estabelecimento de influências nas instâncias governamentais.
O sufismo marroquino possui atualmente duas projeções para fora do país. A mais antiga delas é conduzida pela tariqa Tijania no próprio continente africano. Caravanas de diversos países (a predominante se situa no Senegal) realizam, todos os anos, a peregrinação ao mausoléu de Sidi Ahmed Tijani na cidade de Fez. Essa relação religiosa de longa data para com as demais populações africanas expõe a capacidade do sufismo marroquino em promover uma diversidade de experiências envolvendo a temática do “misticismo” com a do “culto aos santos”, ao mesmo tempo em que permite negociar uma aproximação institucional (via Ministério de Habous e de Assuntos Islâmicos) entre os governos, na promoção de um tipo de islã “aberto” e crítico quanto aos seus usos para fins que envolvam a violência (a luta contra o terrorismo).
Quanto à segunda, a própria tariqa Qadiria Boutchichia, desde a década de 1970 sob o comando de Sidi Hamza, conseguiu uma penetração tanto na Europa (França, Inglaterra, Espanha e Finlândia) quanto na América do Norte (EUA e Canadá). A construção de centros religiosos sufis fornece as formas educacionais do shaykh a distância por meio de seus discípulos. A conversão de intelectuais, músicos e até políticos dessas regiões indica a capacidade do grupo de se projetar no fluxo transnacional religioso contemporâneo.
O exemplo máximo dessa aproximação cada vez mais constante entre o governo e os grupos sufis foi a promoção, por parte da monarquia de Mohammed VI, do sufismo como símbolo de tolerância, moderação e respeito na sociedade marroquina, especialmente, após os atentados de 2003 em Casablanca e de 2011 em Marraquexe. Esses ataques em solo marroquino trouxeram à tona uma preocupação do governo com a imagem do islã praticado no país, onde o sufismo foi usado como símbolo de mediação. Mesmo assim, cabe salientar que o sufismo continua a provocar uma certa desconfiança, por parte da população marroquina, ao considerá-la parte integrante do tipo de islã praticado no país como, por exemplo, na pesquisa realizada pela revista “Telquel” sobre as formas de religiosidade existentes, em que 59% dos entrevistados consideravam que os sufis eram muçulmanos, contra 41% que achavam que não.
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Considerada capital “espiritual” pelos marroquinos, a cidade de Fez abriga, desde 1994, o Festival de Música Sagrada do Mundo e, desde 2007, o Festival da Cultura Sufi.
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Na pesquisa, 59% dos entrevistados consideram que os sufis são muçulmanos contra 41%. Além dessa questão, 25 perguntas foram formuladas na matéria “Musulmans mais différents” realizado por Mohammed Boudarham, Hicham Oulmouddane e Youssef Ziraoui na revista TELQUEL – 15 a 21 de setembro de 2012. Essas entrevistas foram realizadas entre novembro e dezembro de 2011, concentradas em 1474 pessoas maiores de 18 anos e em 15 regiões do país Fonte: http://telquel.ma/2012/09/20/En-couvertur_document-musulmans-mais-differents_536_4225. Acesso: 20 de janeiro de 2017.