Revista Diáspora
Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

Henrique Sanchez explica como a deterioração das condições de vida em Gaza, traumas de guerra e limitações do “humanitarismo” já levaram o conceito de colapso a um passo além

Henrique Sanchez

Confinada há mais de uma década, Gaza vive em um limbo entre o presente que se impõe e um presente que se prenuncia, ambos movidos por distopia, como descreve o jornalista israelense Gideon Levy¹. O processo de total deterioração das condições de vida orienta inúmeras análises e diagnósticos a presumirem que Gaza estaria na iminência de um colapso ou desastre humanitário. Já se passaram seis anos desde o relatório apresentado pela ONU em 2012 que a ilustrava comoinabitável” em 2020², e com as imensuráveis ruínas e traumas psíquicos deixados pela mais destrutiva escalada militar israelense sobre o local (a Operação Margem Protetora), o que pode ter sofrido um colapso é o próprio paradigma de sua projetada “iminência”.

O principal fato que baliza a “contagem regressiva” para a inviabilidade de viver em Gaza é a quase total poluição da sua principal fonte de água, o Aquífero Costeiro, hoje com mais de 96% de sua capacidade comprometida por elevados teores de cloreto e sólidos dissolvidos totais. Em relatório comparativo de 2017³, a ONU reconhece que a deterioração de praticamente todos os indicadores socioeconômicos revelou ser mais acelerada do que se previa. Portanto, sob vários aspectos, o desastre humanitário passou de expectativa passiva da comunidade internacional a uma realidade cotidiana dos palestinos dessa localidade.

Um ancião palestino enche o recipiente de água na pia pública de uma estação de tratamento de água em Khan Yunis. (Foto: Muhammad Sabah, B’Tselem) 

“Com ruínas e traumas deixados pela destrutiva escalada militar israelense sobre o local, um colapso provável é o próprio paradigma de uma projetada ‘iminência’ destrutiva.”

Embora assentado na finalidade de alertar a comunidade internacional e a sociedade civil global sobre a gravidade da situação, o “paradigma da iminência” implica um efeito colateral experienciado há décadas: o reforço do humanitarismo não somente como dispositivo de governança intrínseco ao regime de ocupação israelense, mas também de representação. Ao alargar seu espaço no estreito campo de representações sobre Gaza, as narrativas humanitaristas tendem a ofuscar os processos políticos que moldam a emergência da assistência humanitária e seus mantenedores e doadores por meio de atores estatais com interesses geopolíticos e agendas diplomáticas.

Com isso, não se pretende menosprezar a relevância decisiva para a vida social e econômica em Gaza de serviços humanitários de educação e saúde e programas de combate à pobreza e fome nos territórios ocupados e em campos de refúgio, tampouco relativizar as condições e demandas que os cercam. Há incerteza sobre os rumos da UNRWA, agência mandatária da Organização das Nações Unidas para a proteção de refugiados palestinos desde 1950, com a decisão do governo Trump de cortar o financiamento americano como forma de pressão para impor uma nova solução pós-Acordos de Oslo, a partir da tentativa de apagamento do direito de retorno, como previsto na Resolução 194 da ONU.

Falar em humanitarismo requer o cuidado de reconhecer suas distinções possíveis. Para ilustrar sua permanência histórica e contemporânea em Gaza, recupero a menção no título deste artigo a uma “carapaça enjaulada”, que deriva da metáfora da “jaula de aço”: empregada na tradução americana realizada por Talcott Parsons do clássico “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, que deslocou o sentido original proposto na obra de Weber para se referir ao peso dos bens materiais na conduta ascética dos puritanos. Também está presente no livro do historiador palestino Rashid Khalidi, “Iron Cage: The Story of the Palestinian Struggle for Statehood”, em alusão a “O muro de aço”, ensaio escrito pelo líder sionista Ze’ev Jabotinsky. Jaulas denotam aprisionamento, confinamento e claustrofobia, ao passo que carapaças remetem a resiliência, proteção e fardo.

No caso de Gaza, o humanitarismo pode ser observado como um conjunto sistêmico de práticas e intervenções com o intuito fundamental de preservar vidas. Com base em um extenso trabalho etnográfico com palestinos em campos de refúgio, a antropóloga americana Ilana Feldman compreende o humanitarismo como um “regime de vida” que, sob uma roupagem neutra e apolítica, provoca impactos políticos e também é informado pela agência de palestinos ao reivindicarem criticamente a concessão de assistência humanitária em condições de precariedade, menos como um direito dos palestinos e mais como um dever mínimo da comunidade internacional pela responsabilidade do seu destino desde 1948: isto é, os contínuos processos de expulsão, despossessão e refúgio subsequentes à partilha da Palestina histórica.

Em paralelo à provisão de serviços da UNRWA, há o surgimento de inúmeros projetos de assistência humanitária para a gestão de alternativas emergenciais voltadas a um modo de vida sob colapso humanitário. Com a quase completa inviabilização do Aquífero Costeiro, uma considerável parte da distribuição de água em Gaza tem sido comercializada por pequenas usinas de dessalinização a partir da técnica de osmose reversa, e está em andamento a construção de uma grande usina de dessalinização, subsidiada por instituições financeiras regionais e internacionais.

Entretanto, o processo de dessalinização, seja em pequena ou grande escala, requer um fornecimento extenso e regular de energia elétrica e a importação constante de tecnologias para operar em condições adequadas – situações hoje inviáveis em Gaza. Diante do déficit energético crônico tem sido apresentado o investimento em energias renováveis, especialmente a energia solar, como solução para o funcionamento regular de hospitais, escolas, instituições e o abastecimento doméstico. Porém, também se faria necessária a aquisição de tecnologias e outros materiais fundamentais para haver uma disseminação em escala.

“O potencial limitado da dessalinização e da energia solar frente à dependência energética, tecnológica e comercial esbarra no status quo que construiu e mantém o colapso humanitário de Gaza como um processo eminentemente político em razão da conformação de uma imbricada e assimétrica teia de poderes.”

O potencial limitado tanto da dessalinização como da energia solar diante da dependência energética, tecnológica e comercial esbarra no status quo que construiu e mantém o colapso humanitário de Gaza como um processo eminentemente político em razão da conformação de uma imbricada e assimétrica teia de poderes. Desde a retirada dos assentamentos ilegais em 2005, a reconfiguração da ocupação israelense no local foi operada através da lógica de isolamento e dependência, e o status quo do colapso humanitário em Gaza sustenta-se em dois pontos de apoio intocáveis.

Primeiro, a imposição do regime de bloqueio que impede a livre movimentação de bens, serviços e pessoas pela circunscrição de limites marítimos, fechamento de todas as passagens (Erez, Kerem Shalom e Rafah) com a colaboração das autoridades egípcias e restrição de produtos permitidos por uma lista de itens de “dupla utilização”, com a justificativa de potenciais fins militares envolvendo computadores pessoais. O jornalista e escritor inglês Nicolas Pelham descreve em minúcias como o comércio subterrâneo na fronteira entre Gaza e o Sinai egípcio, operado por um complexo de túneis no período de 2007 a 2014, representou um importante alívio, trazendo uma relativa margem de escape ao regime de bloqueio. Isso até a sua destruição nos contextos da Operação Margem Protetora e retorno dos militares egípcios ao poder.

O segundo ponto é o aprofundamento da fragmentação geográfica e política entre Gaza e a Cisjordânia. Em disputa fratricida com o Hamas desde a derrota nas eleições parlamentares palestinas de 2006, a Autoridade Palestina na Cisjordânia, governada pelo Fatah, restringe o fornecimento de energia elétrica a Gaza de duas a quatro horas por dia e, por vezes, ordena a suspensão do pagamento ao funcionalismo público, a principal fonte de renda assalariada em Gaza.

Um túnel subterrâneo em Rafah, na fronteira com o Egito. (Foto: Marius Arnesen)

A asfixia socioeconômica resultante da combinação de medidas punitivas permanentes e ad hoc não apenas produz o colapso humanitário como também condiciona uma dinâmica emergencial à assistência humanitária como forma de mitigá-lo. Entre o isolamento e a dependência, palestinos de Gaza tornam-se reféns de práticas humanitárias conforme agendas e conveniências externas que estreitam seu horizonte, uma permanência que visa a bloquear potencialidades e destituir representações sobre sua própria agência. As raízes do colapso humanitário impreterivelmente tocam no que a economista política americana Sara Roy considera como “de-desenvolvimento”, um fenômeno institucionalizado concomitante ao processo de Oslo que desvia o potencial econômico de Gaza e bloqueia plenamente sua mínima realização ao destruir capacidades produtivas, diferentemente das variações do chamado “subdesenvolvimento”.

“Entre o isolamento e a dependência, palestinos de Gaza tornam-se reféns de práticas humanitárias conforme agendas e conveniências externas que estreitam seu horizonte, uma permanência que visa a bloquear potencialidades e destituir representações sobre sua própria agência.”

Processos políticos de isolamento e dependência construídos e mantidos por Israel com a colaboração ativa e passiva de vizinhos regionais e da comunidade internacional impedem Gaza de explorar seu potencial produtivo, recompor sua infraestrutura urbana e tecido industrial cotidianamente afetados e sazonalmente destruídos por bombardeios. Também inviabilizam que retome sua atividade econômica a partir do direito ao livre comércio, como recentemente defendido pelo Banco Mundial¹⁰, e em setores como pesca, agricultura, turismo, tecnologia da informação e reservas de gás natural. Ainda que essencial para manter erguida a fábrica social palestina, uma estratégia efetiva de concessão de assistência humanitária teria que repassar ao poder ocupante as obrigações, custos e ônus que subsidiam o regime de ocupação e respaldar formas de soberania econômica e política palestina no acesso a recursos naturais, reservas energéticas e livre comércio que compõem o esteio de qualquer sociedade nacional – pois a soberania mais preciosa e demandada pelos palestinos, a que lhes é historicamente negada, diz respeito ao seu próprio destino.

Para saber mais:

Notas

1. LEVY, Gideon. Dystopia in the Gaza Strip. Haaretz.
https://www.haaretz.com/opinion/.premium-dystopia-in-the-gaza-strip-1.5464156

2. ONU. United Nations Country Team in the occupied Palestinian territory. Gaza in 2020 – A liveable place? 2012.
https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/104094048-Gaza-in-2020-A-livable-place.pdf

3. ONU. United Nations Country Team in the occupied Palestinian territory . Gaza Ten Years Later. 2017.
https://unsco.unmissions.org/sites/default/files/gaza_10_years_later_-_11_july_2017.pdf

4. Os Acordos de Oslo, assinados entre a Organização pela Libertação da Palestina e o Estado de Israel, em setembro de 1993 e 1995, deram início ao processo de paz que previa o fim da presença militar e de assentamentos israelenses nos territórios palestinos ocupados, e a formação da Autoridade Palestina com autogoverno em áreas territoriais definidas como transição institucional para a conclusão de um acordo final baseado nas Resoluções 242 e 338 da ONU.

5. FELDMAN, Ilana. Humanitarian Care and the Ends of Life: The Politics of Aging and Dying in a Palestinian Refugee Camp. Cultural Anthropology 32, n. 1.
https://culanth.org/articles/883-humanitarian-care-and-the-ends-of-life-the

6. UE. Gaza Central Desalination Plant and Associated Works Program: Donor Information Handbook.
https://ec.europa.eu/neighbourhood-enlargement/sites/near/files/executive_summary_for_donors_gcdp_20180321.pdf

7. ABDELHADI, Ibrahim. Could solar energy solve the Gaza electricity crisis? #972 Magazine
 https://972mag.com/solar-energy-gaza-electricity-crisis/137854

8. PELHAM, Nicolas. The Role of the Tunnel Economy in Redeveloping Gaza. In: TURNER, Mandy; SHWEIKI, Omar (Ed.) Decolonizing Palestinian Political Economy: De-development and Beyond. Palgrave Macmillan, 2014.

9. ROY, Sara. De-development Revisited: Palestinian Economy and Society since Oslo, Journal of Palestine Studies, v. 28, n. 3.
http://www.palestine-studies.org/jps/abstract/40676

10. THE WORLD BANK. Economic Monitoring Report to the Ad Hoc Liaison Committee. 2018. http://documents.worldbank.org/curated/en/324951520906690830/pdf/124205-WP-PUBLIC-MAR14-5PM-March-2018-AHLC-Report.pdf

Sobre o autor:

Henrique Sanchez é sociólogo e integrante do Rabet. Atua com iniciativas e projetos de visibilização cultural e política do refúgio palestino em São Paulo.

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