O antropólogo Rodrigo Ayupe revela os vícios da política libanesa ao contar sobre as eleições presidenciais no país
Rodrigo Ayupe
Após um longo período de 30 meses, o parlamento libanês conseguiu no dia 31/10/2016 resolver o impasse que impedia a escolha do sucessor de Michel Suleiman como presidente da República. Michel Aoun, candidato pelo FPM (Free Patriotic Movement) e líder da coligação Change and Reform, foi eleito pelos seus “colegas” parlamentares com 83 votos em uma eleição tumultuada, porém já previamente acordada com a maioria dos partidos políticos. Assim, a formação de um novo governo não significa o afastamento da velha política, já que este acordo foi pautado em trocas de interesses que ultrapassam as ideologias partidárias e a estrutura das coligações. Tudo isso no intuito de fortalecer lideranças individuais no seu desejo de poder, dentro de uma mesma lógica oligárquica dominante desde a independência.
A dificuldade histórica na escolha do presidente libanês – já que não é a primeira vez que acontece esse impasse – pode ser explicada pela própria constituição libanesa, promulgada no pós-independência, na qual é instituída uma divisão de poderes entre as principais confissões religiosas do país, no sistema que ficou conhecido como “democracia confessional”.
O Líbano tem 18 comunidades religiosas oficialmente reconhecidas, das quais três ocupam as posições mais importantes na política nacional: o líder (porta-voz) do parlamento deve ser, obrigatoriamente, um muçulmano xiita; o primeiro-ministro, um muçulmano sunita; e o presidente da República, um cristão maronita.
Essa configuração foi baseada no tamanho da população de cada comunidade calculado no censo de 1932, o único oficial, e que tem sido contestado ao longo do século XX, provocando tensões constantes e, em última instância, guerras civis.
Ademais, o processo de escolha presidencial apresenta mais um ingrediente: a influência externa. O sistema confessional libanês tem impossibilitado o desenvolvimento de uma única política diplomática. Isso porque as diferentes comunidades político-religiosas apresentam aliados diferentes e, na maioria das vezes, em posições conflitantes, seja com países vizinhos ou com as potências “ocidentais”, que procuram satisfazer seus interesses no Líbano a partir da interferência nas decisões internas do país, inclusive na escolha do presidente da República.
O sistema político
O sistema político atual libanês é baseado nas suas deliberações constitucionais somadas às alterações realizadas no acordo de Ta’if em 1990, o qual ajudou a pôr fim à Guerra-Civil (1975-1990) a partir de uma reconfiguração nos assentos do parlamento, estipulando uma igualdade entre cristãos e muçulmanos, ambos com 54 cadeiras, modificando desse modo a estrutura anterior que garantia o maior número de assentos para os cristãos. Além disso, este acordo também diminuiu a concentração de poder nas mãos do presidente da República, atendendo a uma das principais reivindicações dos muçulmanos.
Em linhas gerais, o governo libanês é formado em primeira instância por meio do voto popular, que escolhe a cada 4 anos os 128 membros do Parlamento. Cabe destacar que o voto é universal, podendo o eleitor escolher candidatos de confissões diferentes da sua, e assim, por voto majoritário, os assentos parlamentares são ocupados. Contudo, mesmo que o voto seja majoritário, este deve obedecer à distribuição dos poderes estabelecidos na Constituição e reconfigurados no Acordo de Ta’if.
Após o processo de formação do parlamento, todos os 128 parlamentares votam para a escolha do porta-voz (xiita) e do presidente da República (maronita), e este por sua vez nomeia o primeiro-ministro (sunita), que é responsável pela indicação do Conselho de Ministros (Cabinet). Diante disso, apesar da Constituição restringir a ocupação desses cargos a estas comunidades religiosas, os deputados de todas elas participam das decisões, fazendo com que as fronteiras sectárias sejam ultrapassadas a partir de alianças que são feitas e desfeitas contextualmente, tanto a nível local quanto transnacional.
O impasse presidencial (2014-2016)
O impasse na escolha do presidente libanês começa em maio de 2014, quando chega ao fim o mandato de Michel Suleiman. No dia da eleição para escolher o seu sucessor, o Hezbollah e seus aliados se recusaram a votar no segundo turno em seu inimigo político Samir Geagea, candidato que saiu vitorioso no primeiro round. Assim, a maioria necessária para elegê-lo não foi obtida, fazendo com que novas eleições fossem marcadas, embora todas sem sucesso devido à falta de quórum.
Diante disso, é importante discutir o papel do Hezbollah na política libanesa e a sua interferência nas decisões do país.
Este partido é a base da Coligação 8 de março, que é formada também pelo Free Patriotic Movement, de Michel Aoun, pelo Amal, partido xiita do porta-voz Nabih Berri, e pelo Marada Movement, de Sleiman Frangieh. Esta aliança se opõe ao Bloco 14 de março, conduzida por Saad Hariri e que tem como base o seu partido Future Movement, o Lebanese Forces de Geagea e o Progressive Socialist Party (PSP), do druso Walid Jumblatt.
Tais coligações, formadas em 2005, apresentam desde o início visões opostas no que diz respeito ao Regime Sírio, e isso não tem sido diferente no contexto atual de guerra civil do país vizinho, em que o Hezbollah e seus aliados apoiam o governo de Bashar Al-Assad, ao passo que o Bloco 14 de março se opõe. Tal fato é essencial para compreender a natureza do impasse presidencial que, somado à interferência externa, deixou o Líbano sem presidente durante 2 anos e meio.
O Hezbollah é apoiado pelo Irã, país majoritariamente xiita, aliado do governo sírio, ao passo que a coligação de Hariri é apoiada pela Arábia Saudita, país sunita e alinhado à oposição na Síria.
Diante desse quadro, a perspectiva na sociedade libanesa era que o impasse não seria resolvido e tal opinião era compartilhada pela maioria dos cientistas políticos do país, sobretudo, a partir das rodadas seguintes em que Michel Aoun confirmou sua candidatura e teve como adversário Sleiman Frangieh, da mesma coligação. No entanto, a história controversa de Aoun e o apoio declarado do Hezbollah fizeram com que Hariri se posicionasse a favor de Frangieh e levasse com ele Walid Jumblatt. Isso se explica pelo fato de que a rejeição política a Aoun é significativa, sobretudo, a partir da sua mudança de posição em 2006, quando deixou o Movimento 14 de Março e se alinhou ao 8 de Março, a partir de um acordo com o Hezbollah, que em contrapartida assumia o compromisso de apoiá-lo numa futura candidatura à presidência da República.
Por outro lado, Samir Geagea, além de retirar a sua candidatura, passa a apoiar Michel Aoun, com o discurso de tentar manter a unidade política dos maronitas. Nesse contexto, nota-se uma dissolução momentânea, talvez definitiva, dessas coligações com a realização de acordos bilaterais, quase nunca transparentes, na tentativa de escolher um presidente. Esse processo perdurou por mais 44 sessões fracassadas devido à falta do quórum de 86 parlamentares. Na maioria das vezes eram os deputados do Hezbollah que faltavam à votação, atitude explicada pelos analistas políticos como uma estratégia no intuito de evitar que o candidato apoiado por Hariri e pela Arábia Saudita saísse vitorioso.
Contrariando as previsões pessimistas da maioria das pessoas que acreditavam que o problema seria resolvido apenas em meados de 2017, momento em que ocorrerão novas eleições parlamentares, o Líbano conseguiu chegar a um acordo devido à manobra política realizada por Saad Hariri, que assumiu publicamente o seu apoio à candidatura de Michel Aoun e fez uma série de reuniões ao longo do mês de setembro e início de outubro no intuito de chegar a um consenso nesta mesma posição.
A atitude do líder do Future Movement foi arriscada, pois desagradou parte da comunidade sunita que teme o aumento do poder do Hezbollah na política nacional. Este partido é inimigo político da família Hariri e dos sunitas desde a sua fundação oficial em 1985 e é acusado de estar envolvido no assassinato de seu pai, Hafiq Hariri, numa ação comandada pelo governo sírio. Além disso, Saad se opõe ao envio constante de tropas do Hezbollah para ajudar o regime de Bashar Al-Assad.
Por outro lado, parte dos sunitas e da sociedade libanesa de uma maneira geral apoiaram a atitude de Hariri, alegando que este não tinha muita escolha, no cenário onde ele perdia força política tanto nacional quanto internacionalmente e a população ainda tinha uma certa expectativa em torno dele, no sentido de resolver o impasse e recuperar a economia libanesa. Somada a isso, a proposta de acordo que ele tinha com Aoun o garantiria o cargo de primeiro-ministro, algo que seria muito bom para recuperar a confiança interna e também da Arábia Saudita.
A eleição de 31 de outubro
Dessa vez, todos os 127 parlamentares compareceram para a votação, apenas a cadeira de Robert Fadel estava vazia em virtude de sua renúncia. Em meio a uma votação atribulada, onde foi necessário repetir por três vezes o processo, Michel Aoun foi eleito com 83 votos. Em seu discurso, fez o juramento oficial como presidente da República e prometeu recuperar a economia do país e resolver seus problemas internos.
No dia seguinte, Michel Aoun cumpriu sua parte no acordo e indicou Saad Hariri como primeiro-ministro, iniciando uma série de consultas obrigatórias a todos os parlamentares para a sua efetivação. Na quinta-feira (03/11), com uma aprovação de 112 votos, Hariri foi oficializado no cargo e os únicos que não votaram nele foram os parlamentares do Hezbollah, que em seu discurso afirmaram que, embora não pudessem apoiar o novo primeiro-ministro, também não iriam atrapalhar.
Pós-eleição
A resolução do impasse presidencial e a formação do novo governo provocaram reações e opiniões diversas. Por um lado, houve aqueles que se mostraram otimistas diante dessa nova fase, muitos celebraram nas ruas do país, soltando fogos, segurando fotografias de Aoun e Hariri e exibindo cartazes de apoio.
Por outro lado, tenho conversado com muitos que não acreditam que a eleição de um novo presidente possa alterar o status quo de uma velha política centrada nos interesses dos mesmos grupos e lideranças políticas que controlam o país desde sempre.
O fato é que esse longo processo de indefinição desestruturou velhas alianças e deu lugar a novas configurações que ultrapassam as fronteiras das comunidades religiosas. Todavia, no jogo político libanês notamos a presença das mesmas peças, onde o pai é substituído pelo filho e assim sucessivamente, caracterizando um sistema de dominação tradicional. Esse sistema é marcado por uma significativa fragilidade das instituições, e a própria eleição dia 31 ilustra esse fato, uma vez que todos já sabiam o que aconteceria e o protocolo virou piada na mídia e na sociedade.
SOBRE O AUTOR:
Rodrigo Ayupe é doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFF, mestre em Antropologia pela mesma instituição e pesquisador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM/UFF). Desde 2014, realiza trabalho de campo no Líbano.