Maura Silva
Era 14 de maio de 1948 quando o presidente da Agência Judaica David Ben-Gurion proclamou em Tel Aviv o Estado de Israel. Assim, o primeiro Estado judeu foi estabelecido em dois mil anos.
Na manhã seguinte, 15 de maio, acontece o que conhecemos como Al Nakba (a catástrofe em árabe) e o consequente êxodo de 800 mil palestinos que foram obrigados a abandonar suas casas em decorrência do avanço das tropas israelenses.
Não é coincidência a criação do Estado de Israel ser relacionada a uma catástrofe, afinal de contas, essa é a palavra que melhor define sua trajetória desde então. Na farsa sustentada por Israel, a sua criação acontece após o fim de uma guerra pela independência travada contra países Árabes; essa narrativa sustenta que o êxodo palestino foi uma consequência “natural” do conflito.
Mas o que os palestinos de 48 viveram e ainda vivem é a ausência. Ausência de um território expropriado, o abandono forçado de casas, cheiros, lembranças. O cotidiano que deixa de existir em sua forma natural para dar lugar ao horror.
O escritor palestino Edward Said traduz a Nakba como: “a insuportável fenda forçada entre um ser humano e um lugar nativo, entre o eu e seu verdadeiro lar”.
É evidente que a Nakba não foi um evento que ficou na história. Aqueles dias sucederam a eclosão de traumas que acompanha dia após dia todos aqueles que sonham com o direito retorno.
1948 é marcado como o ano em que a limpeza étnica chega aos mapas, livros e dicionários
O jornalista e escritor austro-húngaro Theodor Herzl, definiu no primeiro encontro sionista, realizado em 1897, que os judeus retornariam em massa à “Terra Santa”, em Jerusalém. Os planos de Herlz são estimulados pela Declaração Balfour assinada pela Grã-Bretanha em 1917, que previa a criação de um “lar nacional para o povo judeu”. O documento – de 67 palavras – é a materialização do que viria a ser transformar no Estado de Israel.
Vale ressaltar que a derrota do Império Otomano (de que a Palestina fazia parte), no fim da Primeira Guerra Mundial e a passagem do território para mandato britânico em 1922, facilitaram sobremaneira as ambições do sionismo internacional.
A progressiva imigração judaica na Palestina, decorrida das perseguições nazistas, vai estrategicamente ocupando espaço onde o sionismo pretende implantar o seu Estado.
A ONU e a partilha
Diante do cenário que se formava, em uma sessão especial, a Assembléia Geral das Nações Unidas votou um plano de divisão da Palestina em dois novos estados. Um Comitê Especial para a Palestina, UNSCOP (United Nations Especial Committee for Palestine) foi formado. Nesse grupo nenhum dos membros tinha qualquer experiência prévia em resolução de conflitos ou na história local. Ainda assim, a UNSCOP recomendou a partilha da Palestina em dois estados, unidos em uma espécie de federação por meio da unidade econômica.
Está claro que ao aceitar a Resolução de Partilha, a ONU ignorou totalmente a composição étnica do país. Tivesse desejado fazer corresponder o território em que os judeus se estabeleceriam na Palestina com a extensão de seu futuro estado, a ONU designar-lhe-ia não mais do que 10% da terra. Mas a ONU aceitou as reinvindicações nacionalistas do movimento sionista sobre a Palestina e, mais ainda, buscou compensar os judeus pelo Holocausto nazista na Europa. (PAPPÉ, 2006, p. 51).
Em 14 de maio de 1948, o líder sionista David Ben-Gurion anunciou a criação do Estado de Israel, e declarou que a imigração de judeus ao novo estado seria irrestrita. Entre 1948 e 1951, cerca de 700.000 judeus emigraram para Israel, sendo dois terços deles compostos por judeus deslocados pela Guerra na Europa.
Daí em diante os palestinos que foram sumariamente expulsos de suas casas, passaram a ser chamados “refugiados”.
Assim, a limpeza étnica da Palestina foi ganhando corpo. Os que ficaram, foram presos – crianças e jovens não escaparam e seguem sendo sistematicamente encarcerados até os dias de hoje – sofreram abusos nos vilarejos e assédio do governo israelense. Tiveram suas casas confiscadas; mesquitas e locais sagrados foram profanados, sua liberdade de movimento e expressão foi cerceada, direitos básicos foram banidos, o roubo de terras virou prática comum por parte dos colonos e militares, mais de 700 mil oliveiras e laranjeiras foram destruídas numa clara demonstração de vandalismo, casos de estupros foram relatados e a igualdade perante a justiça deixou de existir.
Entre os anos de 1948 e 1949, a Cruz Vermelha produziu relatórios da vida sob ocupação militar. Os abusos e a ausência de direitos básicos foram relatados com preocupação e advertência. Os refugiados se espalharam pelo mundo e nesse período já batiam a casa dos milhares.
Direito de Retorno
A Assembleia Geral da ONU resolve que os palestinos que desejam retornar a suas casas e viver em paz com seus vizinhos devem poder fazê-lo no prazo viável mais curto possível e que se deve pagar indenizações a título de compensação pelos bens dos que não desejem retornar ou por qualquer bem repartido ou danificado que, sob os princípios da lei internacional e da igualdade, devem ser reparados pelos governos ou autoridades responsáveis.
Resolução 194 (III) da Assembleia Geral da ONU, 11 de dezembro de 1948.
Os palestinos de 1948 foram negligenciados e sumariamente esquecidos ao longo da história quando o assunto é o direito de retorno. Todas as tentativas de acordos estabelecidas desde então excluem sistematicamente a Nakba e a questão dos refugiados.
Para entender isso precisamos caracterizar a profundidade que o nível de negação dos crimes cometidos em 1948 ainda tem hoje em Israel e associá-lo com a existência, por um lado, de um medo genuinamente percebido, e por outro, de um racismo antiárabe profundamente enraizado – ambos intensamente manipulados […] Por trás dessas medidas draconianas do governo israelense para impedir qualquer discussão a respeito do direito de retorno, há um medo profundamente arraigado em face de qualquer debate sobre 1948, uma vez que o ‘tratamento’ dado aos palestinos daquele ano fatalmente levantará dúvidas a respeito da legitimidade moral do projeto sionista como um todo. (PAPPÉ, 2006, p. 280).
Não ser reconhecido como refugiado e ter seu direito de retorno negado, é mais um estigma que os palestinos de 1948 espalhados pelo mundo carregam. Para Israel esse reconhecido está diretamente ligado à responsabilidade histórica e a culpa pela limpeza étnica daquela região.
O reconhecimento dos palestinos como vitimas casa-se com temores psicológicos profundamente enraizados, pois exige que os israelenses questionem a autopercepção do que ‘estava acontecendo’ em 1948 […] A inabilidade dos israelenses para reconhecer o trauma vivido pelos palestinos fica ainda mais gritante quando contrastada com a forma da narrativa nacional palestina contar a Nakba, um trauma que eles continuam a viver até os dias de hoje. Se essa condição de vítima fosse uma consequência “natural” e “normal” de um longo e sangrento conflito, os receios de Israel em permitir que o outro lado “se tornasse” vitima do conflito não seriam tão intensos […] Mas o que os palestinos estão reivindicando, e o que se tornou uma condição sine qua non para muitos deles, é que sejam reconhecidos como vítimas de mal ininterrupto, conscientemente perpetrado contra eles por solapar ser próprio estatuto de vítimas. Isso teria implicações políticas em nível internacional, mas também – e de forma muito mais crítica – dispararia repercussões morais, e existenciais na psique judaica israelense: os judeus israelenses teriam de reconhecer que se tornaram a imagem refletida de seu pior pesadelo. (PAPPÉ, 2006, p. 271-280).