Como é a crítica ao Estado-nação e a organização por assembleias do movimento curdo
Por Ana Paula Massadar Morel
“Entretanto, os curdos existem.”
(Abdullah Öcalan)
A palavra Curdistão pode ser remetida à palavra suméria kurti que, há milhares de anos, significava algo parecido com “povo da montanha”. Desde então, a luta dos curdos pela sua existência atravessou um longo caminho até os dias atuais, quando vemos circulando pelo mundo imagens de mulheres curdas lutando nas montanhas com seus sorrisos e armas que se tornaram símbolos de resistência. Podemos dizer que a grande repercussão dessa luta hoje (assim como sua força e beleza) está ligada, dentre outros fatores, ao seu aspecto libertário. Diferente de uma ideia comum relacionada às lutas dos povos minoritários, o movimento de libertação curdo não busca construir um novo Estado. Atravessando a questão étnica, mas indo além dessa, o movimento apresenta uma proposta, que está sendo experimentada nos territórios liberados, de ruptura radical com a modernidade capitalista: o Confederalismo Democrático.
Atualmente, o povo curdo é um dos maiores povos sem Estado, com cerca de 30 milhões de pessoas concentradas, principalmente, na região do Curdistão, que abrange uma parcela territorial dos Estados da Síria, Iraque, Turquia e Irã, com quem muitos grupos estão em conflito há décadas.
Mais recentemente, os curdos também entraram em confronto com o Estado Islâmico (ISIS). São claras as tentativas de etnocídio e genocídio em relação ao povo curdo. Enquanto alguns árabes chamam os curdos de “árabes do Iêmen”, alguns turcos os denominam “turcos das montanhas”, expressando alguns dos mecanismos da tentativa de assimilação que sofre esse povo. Além disso, a região montanhosa onde vivem é uma das mais ricas em florestas e água de todo o Oriente Médio, o que tem chamado atenção de diversas potências estrangeiras.
Entretanto, os curdos existem e lutam… Atualmente, a perspectiva política que tem mais força na região está ligada ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – é principalmente dessa perspectiva que tratamos quando mencionamos o movimento curdo. O PKK foi fundado em 1978 na Turquia, sob orientação do marxismo-leninismo, começando um confronto de guerrilhas em 1984, que tinha como objetivo a libertação nacional, através da formação de um Estado Curdo independente. No final da década de 90, o movimento rompe com essa perspectiva e desenvolve a proposta do Confederalismo Democrático, sistematizada por Abdullah Öcalan de dentro da prisão. Essa proposta tem como influência os escritos do anarquista Murray Bookchin e a experiência do movimento zapatista que constrói toda uma vida baseada na autonomia em Chiapas, no México.
O movimento curdo passa a apontar para o estabelecimento dos Estados-nações, central no paradigma da modernidade capitalista, como um dos grandes pilares da opressão que sofrem, evidenciando a conexão causal entre essa opressão e a dominação global do sistema capitalista. Os Estados-nações se desenvolveriam através de todo tipo de monopólio (político, econômico, ideológico), tendo como base o sexismo e o nacionalismo. A escravidão da mulher seria a opressão mais profunda e disfarçada, enquanto o nacionalismo teria propiciado séculos de destruição em nome de uma sociedade unitária imaginária.
Diante disso, os curdos acreditam que a criação de um novo Estado só iria perpetuar opressões, ainda mais ao considerar a diversidade de povos que habitam o mesmo território na região do Curdistão.
O Confederalismo não pode ser pensado, então, como uma entidade monolítica homogênea, uma vez que ele é aberto a outros grupos, é flexível, multicultural, antimonopolista e orientado para o consenso.
Ele se estabelece por um amplo projeto visando a soberania econômica, social e política, assim como a criação de instituições necessárias para possibilitar à sociedade um autogoverno. As eleições perdem a importância em prol de um processo político dinâmico e contínuo baseado nas intervenções diretas do povo. A população deve estar envolvida em cada processo de debate e decisão.
Este modelo pode ser organizado por conselhos abertos, parlamentos locais e congressos gerais. Nesse sentido, não há uma forma única a ser estabelecida, a ideia, inclusive, é valorizar as experiências históricas da sociedade e sua herança coletiva, baseadas em clãs e tribos, em oposição às estruturas centralizadoras do Estado-nação. Os diferentes atores sociais formam unidades federativas, células germinais da democracia participativa, que podem se associar em novas confederações mais amplas. Ainda que o foco esteja no nível local, organizar o Confederalismo globalmente é importante para mudar radicalmente a sociedade.
Para garantir que esse processo de democratização possa se realizar, a autodefesa é fundamental. Diferente da militarização verticalizada típica dos Estados, as forças de segurança devem responder às decisões populares tomadas de baixo para cima e todos que participam da autodefesa frequentam cursos de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista. A ideia em médio prazo é que toda a população possa receber treinos de autodefesa, para que não seja necessário polícia. Além disso, as unidades militares elegem seus oficiais. Assim funcionam a Unidade de Proteção do Povo (YPG) e sua fração feminina, a Unidade de Proteção Feminina (YPJ).
Esta última está ligada a outro pilar do Confederalismo: o feminismo. É fundamental a ideia de que as mulheres organizadas podem gerenciar a si mesmas e, mais do que isso, sem a libertação da mulher é impossível pensar uma sociedade igualitária. A ecologia é outro pilar central: a proteção do meio ambiente, incompatível com o capitalismo, deve ser levada em consideração seriamente durante o processo de mudança social.
Apesar da guerra e dos confrontos constantes que assolam a região, a proposta do Confederalismo Democrático do povo curdo (que como vimos vai muito além dele) tem possibilitado uma série de experimentações. Cooperativas de trabalhos, terras coletivizadas, coletivos de mulheres, assembleias comunitárias, justiça restauradora substituindo o sistema de tribunal, reconstrução de cidades, criação de mecanismos horizontais de autodefesa, dentre muitas outras a serem apoiadas e mais bem conhecidas em outras partes do mundo.
Sobre a Autora:
Ana Paula Massadar Morel, Doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ. Realiza pesquisa sobre o movimento zapatista, Chiapas, México.
Quer saber mais sobre o assunto?
ÖCALAN, Abdullah. Confederalismo Democrático. International Initiative Edition. 2012.
ÖCALAN, Abdullah. Guerra e paz no Curdistão. International Initiative Edition. 2008.
ÖCALAN, Abdullah. Liberating Life: Woman’s Revolution. International Initiative Edition. 2013.
Todos disponíveis em: http://www.freeocalan.org/?page_id=267