Dally Schwarz entrevista a bailarina marroquina Bouchra Ouizguen, que fala sobre suas referências, a cena da dança contemporânea no Marrocos e de sua passagem pelo Brasil.
Dally Velloso Schwarz
Graduada em Estudos de Mídia pela UFF e mestre em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRJ, com formação de bailarina contemporânea na Escola Angel Vianna.
(Ha! Fotografia: Ian Douglas)
Bouchra Ouizguen nasceu em Ouarzazate, no Marrocos, foi bailarina solista de dança oriental entre 1995-2000 em Marrakesh e, desde então, trabalha com dança. Quando foi morar na França, teve contato com coreógrafos diversos, com quem estudou e colaborou em trabalhos que influenciaram muito suas pesquisas e trajetória. Em 2002, fundou a primeira companhia de dança contemporânea do Marrocos, a Cia Anina, junto a Taofiq Izeddiou e Said Ait El Moumen, dois artistas que também desenvolvem trabalhos e pesquisas individuais na área. Atualmente, movimenta a cena marroquina e internacional com a dança.
Ano passado, Bouchra se apresentou no Brasil no 8º Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo, no Fórum Internacional de Dança (FID), em Belo Horizonte, e no Panorama de Dança, no Rio de Janeiro, com os trabalhos Madame Plaza (2011) e Ha!. Trazendo uma linguagem e uma estética diferenciadas e também aspectos culturais não ocidentais para a cena, despertou a curiosidade e o interesse do público. Os espetáculos tratam de temáticas distintas, porém, em ambos percebemos a influência das bailarinas para a criação do trabalho. Aproveitando essa passagem, fizemos uma entrevista com Bouchra.
(Fotografia: Hibou Photography. Bouchra com as aïtas Kabboura Aït Ben Hmad, Fatima El Hanna e Naïma Sahmoud em Madame Plaza)
Você sabe o que são as aïtas ?
Também conhecidas como asshikhat, são artistas que se apresentam em celebrações, casamentos e clubes noturnos, cujas performances incluem canções, lamúrias e sortilégios. Por mexerem com tabus sociais são alvo de preconceito. As aïtas têm uma reputação ambígua, sendo objeto de admiração, fantasias e rejeição. Suas performances têm como objetivo trazer assuntos da intimidade, tais como amor, adultério e abandonos familiares, para a esfera pública, focando também a questão da sexualidade. Por causa dos lugares sociais por onde transitam e por seus movimentos pélvicos na dança, são normalmente associadas a um “corpo festivo”.
Diáspora: É a primeira vez que você vem ao Brasil? Como foi a experiência de apresentar o trabalho aqui, quais foram os desafios eavanços?
Bouchra: É a primeira vez na América do Sul, uma experiência muito excitante para todas. São desafios da descoberta e da adaptação também, de formidáveis encontros com o público da cidade de Belo Horizonte, São Paulo e Rio, e com os parceiros organizadores, que lutam para fazer acontecer esses festivais com pouco recurso financeiro e muita garra, o que é muito parecido com o Marrocos, em diversos pontos. Uma sensação agradável de não se sentir estrangeira nos lugares, mas ao mesmo tempo, assustada pela vertigem provocada pela velocidade das cidades visitadas. Estou impaciente por voltar para visitar a natureza de vocês.
D: Bem, você já disse em algumas entrevistas que a cena da dança contemporânea no Marrocos ainda é bem tímida. O que você percebe disso em relação às questões culturais de resistência, nos dois sentidos da palavra? No sentido de resistir a mudanças e no sentido de provocar mudança social, de mais aberturas e rupturas possíveis.
Bouchra: A cena é tímida pois não somos tão numerosos quanto em outros países. Nós somos uma das companhias, as quais se pode contar nos dedos de uma mão. Eu não estava falando dos artistas e das obras em si no meio da dança contemporânea. Os artistas da cena noturna abundam em riqueza e originalidade, porém esse é um meio fragilizado pelo turismo. A mudança social para mim está aí e deve ser aproveitada, é uma questão de vida e morte, porque quando a criação estrá em curso, ela não precisa esperar pela mudança, qualquer que seja ela.
D: Você acha que a dança, de uma forma geral, e a arte na contemporaneidade estão muito dissociadas de uma dimensão do “sagrado”, ou da conexão com algo para além do mercado?
Bouchra: Claro que há artistas que se dissociam, aqui e em outros locais. Essa questão do sagrado me interessa, na arquitetura, no som, na dança. Aqui ela ocupa um lugar importante, de forma atemporal. Eu não poderia generalizar, a arte, a contemporaneidade, o mercado, tudo isso é bastante abstrato. Eu não sei o que isso significa realmente. O que me interessa é o que me toca, me move, para além do tempo, e que continua vivendo em mim obsessivamente. Existem alguns artistas plásticos, como Khalil El Ghrib, a cineasta Tala Hadid, autores e monumentos quase sagrados pelos quais eu tenho grande respeito.
D: Infelizmente, ainda existe muita exotização em torno de coreógrafos do Oriente Médio, da África e Ásia. Você fala que uma de suas inspirações são os dervixes. Como a dança ou giro do dervixe contribui para o campo da movimentação e da dança na contemporaneidade?
Bouchra: Na verdade, como vocês sabem, o conteúdo tomado é muitas vezes editado pelos meios de comunicação que divulgam o trabalho, temos que responder rápido, resumir, traduzir… e, às vezes, infelizmente, enquadrar ou sintetizar algo para facilitar a comunicação.
Eu nunca me inspirei nos dervixes giróvagos, mas me alimentei de leituras de Mawlana Jalal al-Din Rumi, criador da Ordem dos Dervixes Giróvagos, dentre outros, porque a poesia, a literatura sempre me acompanharam.
D: Madame Plaza e Ha! são trabalhos que envolvem uma composição em colaboração com outras mulheres dançarinas. Como foi fazer esse trabalho? O que essas danças ou essas mulheres trouxeram de contribuição para o seu trabalho com a dança contemporânea?
Bouchra:
De fato, trabalhei em colaboração com cantoras e dançarinas, mulheres de uma geração diferente da minha, as quais ninguém nunca tinha convidado para apresentar (seja no cinema ou na dança). Elas vêm de uma cena mais popular, de outros lugares de representação… são produtivas, descomplexadas e, sobretudo, decididamente modernas e conectadas às suas próprias identidades.
Elas me proporcionaram uma liberdade, um sentido de amor pelo que eu faço. Minhas artistas “punkinhas” preferidas.
(Bouchra Ouizguen e Cia O. em Ha! Fotografia: Hervé Véronèse. Centre Pompidou.Em Ha!, com pesquisa inspirada na obra do poeta persa sufi Mawlana Jalal al-Din Rum)
Giro Sufi – uma forma de vida
Abu Muhammad Mutaish disse: “O Sufi é aquele cujo pensamento vai no mesmo passo que seu pé, quer dizer, está inteiramente presente: sua alma está onde seu corpo está, e seu corpo onde sua alma está, e sua alma onde seu pé está, e seu pé onde sua alma está. Este é o sinal da presença sem ausência. Outros dizem o contrário: ‘Ele está ausente de si mesmo, mas presente diante de Deus’. Não é assim: ele está presente consigo mesmo e com Deus.” O giro sufi, Sema, ou giro do dervixe, como é mais conhecido, não é somente um método ou movimento, ele faz parte de uma prática e filosofia que acompanha uma trajetória e dedicação pessoal. É uma tradição passada de forma muito íntima, pessoal e durante alguns anos. O Giro não é uma dança ou técnica, ou um meio de se atingir estados alterados de consciência, nem mesmo um meio de atingirmos as dimensões que descrevemos. É uma conexão divina completamente relacionada com Deus.