As nuances do conflito sírio e as diferenças entre os diversos grupos políticos islâmicos sob a análise do antropólogo e especialista em islã Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
Liza Dumovich – coeditora
Ana Maria Raietparvar – coeditora
Paulo Pinto é um dos maiores especialistas em Oriente Médio e islã, no Brasil e no mundo. É professor da Universidade Federal Fluminense e fundador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da mesma instituição. Doutor pela Boston University, morou 2 anos na Síria fazendo trabalho de campo em várias zawiya (espaços rituais) sufis em Alepo. Fez trabalho de campo também no Iraque, Irã e em comunidades muçulmanas no Brasil. É autor dos livros “Islã: Religião e Civilização: uma abordagem antropológica” e “Árabes no Rio de Janeiro”, além de um dos organizadores de “Ethnographies of Islam: Ritual Performances and Everyday Practices” e do recém-lançado “Crescent over Another Horizon: Islam in Latin America, the Caribbean, and Latino USA”. Nesta entrevista à Revista DIASPORA, Paulo Pinto traz uma reflexão sobre o que é pensar o Oriente Médio hoje, discutindo algumas das questões mais relevantes sobre o tema, esmiuçando as ramificações do islã político e elucidando a guerra civil síria, cujo principal desdobramento em escala global é a chamada crise dos refugiados.
DIASPORA: Você concluiu seu doutorado sobre o sufismo na Síria em 2002, mas continuou sua pesquisa acerca da temática mais ampla do Oriente Médio e do islã. Desde então, o que mudou no pensamento sobre o Oriente Médio?
Paulo Pinto: Antes do 11 de Setembro de 2001, o estudo do islã já era politizado. Nos anos 1990, quando se abria o jornal, era o mundo muçulmano do início ao fim. Havia questões políticas que eram investidas a partir da politização da própria existência do mundo muçulmano e das suas tradições culturais, religiosas, etc. Do ponto de vista dos meus interlocutores na Síria, o 11 de Setembro era o conflito entre uma visão do islã que eles consideravam hostil a eles próprios, com uma superpotência que eles também consideravam hostil, então não tinham nenhum interesse real nisso. O que muda no Oriente Médio, efetivamente, é a invasão do Iraque em 2003. Aí é diferente, porque você tem uma presença do império americano dentro do Iraque, liderando uma agressão direta a um país da região. E para os que viviam na Síria, a pergunta era sobre quem seria o próximo. Obviamente, a Síria estava na lista. Então, isso sim começa a afetar algumas dinâmicas locais, e questões políticas passam a pressionar o campo acadêmico a dar certas respostas.
Em 2002, quando apresentei o resultado da minha pesquisa no Instituto para as Ciências Humanas, em Viena, uma das pessoas que estava assistindo, uma aluna de doutorado, me perguntou quão perigosas essas pessoas eram (as pessoas que eu estava descrevendo). E eu achei a pergunta extremamente bizarra, a pessoa supor que o simples fato de alguém ser muçulmano faz com que ele seja necessariamente capaz de atos de violência randômica contra pessoas de outras tradições, e respondi ironicamente dizendo: “Bom, eu estou inteiro, como você pode ver, canibais eles não são”.
Nas Ciências Sociais, você sempre tem que lidar com estereótipos, que estarão sempre lá, independente de quão benignos ou malignos eles sejam, sobretudo, quando se trata do Oriente Médio. O conflito Israel-Palestina já formata toda uma série de discursos e estereótipos sobre quem são os árabes, quem são os muçulmanos, etc. e isso não é novidade. No entanto, atualmente, há uma maior intensidade e uma maior pressão para a Academia responder certas questões que não necessariamente são questões academicamente válidas. Então, o que eu senti nesse período é um duplo efeito, um efeito paradoxal: por um lado você tem uma maior pressão, e você lida com estereótipos que são cada vez menos sutis, e às vezes mais agressivos; por outro lado você tem um interesse crescente, uma vez que só se fala nisso, todo mundo quer saber do que se trata, e cada crise vai produzindo novas questões. Obviamente, o grande impacto é a guerra civil síria e o crescente sectarismo dos conflitos dentro do Oriente Médio, ou seja, a crescente polarização das identidades religiosas em quadros de referência sectários que está ligada a projetos políticos. Porém, essa polarização não começa com os sírios, mas justamente com a invasão americana no Iraque e a guerra civil iraquiana (de 2005 até 2009).
D: Como você vê o crescimento do islã político no mundo muçulmano e na Europa?
PP: Em geral, os discursos sobre o islã político pecam pela simplificação e pelo desconhecimento. Alguns discursos misturam absolutamente tudo: colocam a Al-Qaeda, a Irmandade Muçulmana, ISIS, Hamas, Hezbollah, tudo no mesmo lado, como se fosse tudo a mesma coisa,e obviamente nenhum especialista vai falar dessa maneira.
Há vários fenômenos políticos que usam o islã como linguagem, e o “islã político” pode ser entendido como um nome genérico para tudo isso. No entanto, ele também pode se referir a um fenômeno específico dentro desse processo de produção de projetos políticos que têm o islã como linguagem cultural. Eu, por exemplo, uso nessa segunda acepção do termo. O islã político tem como quadro de referência a construção de um Estado e é a partir desse Estado, de instituições políticas, jurídicas, etc., que se espera criar uma ordem social islâmica. Exemplos desses grupos com projetos políticos são a Irmandade Muçulmana, o Hezbollah e o próprio Hamas, cuja característica primordial é primeiro uma leitura modernista do islã. Uma segunda característica é que eles têm o Estado-nação como horizonte político, então, embora eles tenham discursos sobre solidariedade pan-islâmica, grandes questões como Iraque, Palestina, a ação deles é limitada pelas fronteiras do Estado-nação. A arena de disputa política deles é o território nacional, é nisso que eles têm interesse, em governar um determinado território, uma determinada população, e, nesse sentido, eles compartilham o imaginário político dos nacionalistas.
Já fenômenos como a Al-Qaeda estão ligados a um outro processo, que é a construção do que eu chamo de “jihadismo globalizado”. Se o islã político sai do período colonial, no início do século XX, o jihadismo globalizado sai da guerra do Afeganistão nos anos 80 do século XX, que surge do confronto contra os soviéticos, a partir de um apoio logístico da aliança Estados Unidos – Paquistão – Arábia Saudita. E as pessoas que são formatadas dentro desse universo têm um outro imaginário político. O horizonte político deles é o império, ou seja, eles não têm interesse em um território específico, mas sim no combate ao império, primeiro o soviético, depois o americano. Como o império está em todo lugar, a arena de combate deles é a mídia, e você tem uma marca, a Al-Qaeda.
O sucesso da Al-Qaeda é que ela ela cria um quadro de ação que eu chamo de “gramática da violência”, que permite conectar questões locais às grandes questões da política internacional – o império americano, o Iraque, a Palestina – sem necessariamente atuar em nenhum espaço físico. Os atentados são terríveis, são extremamente letais, mas ninguém seriamente acredita que eles tenham algum valor militar.
Você não consegue conquistar Nova Iorque derrubando dois prédios, você não consegue conquistar Paris com um tiroteio em alguns locais de diversão. Na verdade, o que você conquista é a mídia e é ela que faz a amplificação de tudo isso. Se o Movimento de Libertação de Aceh explodir uma bomba num mercado em Jacarta, não sairá em nenhum jornal, talvez no Asian Times na décima página, mas, se a Al-Qaeda faz isso, sai na primeira página de jornais de todo o mundo. Então, essa lógica também incita os poderes imperiais a intervirem, é uma lógica agonística que funciona muito bem, pois os americanos invadem o Afeganistão e, logo em seguida, invadem o Iraque, e o império deixa de ser uma abstração para ser uma realidade.
O que acontece é que a partir de 2007/2008, essa lógica agonística entra em declínio, em parte porque o poderio americano começa a recuar (eles fecham as bases na Arábia Saudita, começam a preparar a saída do Iraque, e saem a partir de 2009), e em parte porque a própria gramática da Al-Qaeda começa a se esfacelar em diferentes formas de expressar projetos políticos. A marca Al-Qaeda começa a sofrer suas “falsificações”, e você começa a ter, por exemplo, a Al-Qaeda no norte da África, na Mesopotâmia, que usam a gramática da violência do jihadismo, mas para fins locais ou regionais. E você passa a ter dentro do campo jihadista toda uma série de disputas. O [Ayman al] Zawahiri, que é o sucessor do Bin Laden, tenta restaurar uma unidade nesse sentido, mas não consegue.
E essa fragmentação chega a níveis individuais, como no caso dos irmãos de origem chechena que explodem bombas na maratona de Boston, fazendo isso sem nenhum projeto maior. Eles simplesmente utilizam essa linguagem do jihadismo para um fenômeno tipicamente americano – adolescentes problemáticos que decidem se matar e matar outras pessoas – só que ao invés de fazerem um tiroteio numa escola, eles decidem explodir bombas na maratona de Boston. Então a lógica do jihadismo levará a essa fragmentação, da qual surge o terceiro fenômeno, que nós conhecemos hoje e eu chamo de “jihadismo territorializado”, o ISIS, ou DAESH ou Estado Islâmico. Eles vão usar todas as técnicas do jihadismo, inclusive a mídia, e da violência para atrair justamente tanto a atenção quanto a ira dos poderes que eles supostamente querem confrontar, juntamente com toda a ideia do islã político de construir um quadro institucional para governar um determinado território, para governar uma determinada população. Então o ISIS é um híbrido entre o islã político e o jihadismo, até com elementos do próprio discurso do nacionalismo.
E hoje em dia nós temos três fenômenos distintos que coexistem e interagem entre si e que uma boa análise tem que saber distinguir. O que nós vemos na Europa é a atração principalmente de jovens, porque, por um lado, você tem o racismo e a discriminação contra os jovens muçulmanos na Europa, que obviamente provocam uma série de ressentimentos que fazem com que esses discursos sejam atraentes e, por outro lado, você tem uma série de elementos de revolta individual, que também levarão pessoas a usar essa linguagem para se expressar. Então temos as três grandes teses de François Burgat, Gilles Kepel e Olivier Roy.
Olivier Roy diz que você não tem a radicalização do islã, mas a islamização da radicalização, ou seja, é uma cultura jovem de radicalização que, por serem jovens muçulmanos, vai usar a linguagem do islã.
Eu tendo a concordar muito com isso e acho que isso não é incompatível com a ideia de que outros jovens serão atraídos justamente por versões militantes e violentas do islã para expressar também o seu próprio descontentamento, o seu ressentimento ou a sua marginalização nas sociedades europeias. Então, há duas coisas acontecendo.
Enquanto a Al-Qaeda usava a internet para publicar longos textos teológicos em árabe, o Estado Islâmico, o DAESH, usa o Twitter; eles vão usar toda essa linguagem jovem e, se você analisar as mensagens de algumas pessoas que vão combater, você tem também elementos dessa cultura jovem de videogame, da “glamourização” da violência, de ter a violência praticamente como um elemento lúdico. É importante entender que você não tem um caminho para a radicalização, mas sim n caminhos, que só podem ser compreendidos se forem analisados caso a caso para entender como, em determinado percurso, a pessoa vai se interessar por tal e tal fenômeno. Dito isso, é preciso reconhecer que isso está longe de definir a experiência dos muçulmanos europeus: 99.99% deles são extremamente bem integrados nas sociedades em que vivem, apesar da sua posição marginal ou de sofrerem discriminação, eles simplesmente querem viver suas vidas e praticar sua religião como for possível.
Outra coisa é o crescimento do salafismo na Europa. O salafismo não é a mesma coisa que jihadismo militante. 99% dos salafistas são voltados para o estudo e para a devoção religiosa, então a ideia de que o salafismo em si leva as pessoas à radicalização e que a presença do salafismo na Europa é um sinal disso é simplesmente risível, fruto do desconhecimento que se tem quanto a isso. O salafismo é uma das vertentes do islã que é menos conhecida e menos estudada. Os números, porém, dizem por si só: dos 4 ou 5 milhões de muçulmanos franceses, 1.700 foram para a Síria combater, um percentual minúsculo. Além disso, parte desses 1.700 se desencantam, voltam e não vão mais seguir nada disso, outros se encantam e continuam, e outros, ainda, voltam para praticar atos violentos. Mas dizer que existe um problema geral entre os muçulmanos franceses por conta disso é comprar o discurso do próprio Estado Islâmico, isto é, de que todos os muçulmanos franceses devem estar conectados ao seu projeto de poder. E isso não é verdade. Então, há toda uma amplificação do fenômeno que tem o efeito perverso de dar mais razão aos grupos radicais e apagar todas as trajetórias de muçulmanos franceses ou belgas ou italianos, etc., de conversão, de adaptação, de construção da sua identidade religiosa dentro do contexto europeu.
D: E o conflito sírio? Quais são as questões-chave para entendê-lo?
PP: São duas possibilidades de interpretar o conflito: você pode olhar de cima para baixo e de baixo para cima. De cima para baixo são discursos que você escuta a partir do campo das Relações Internacionais: a ideia das superpotências, ou pelo menos, “os americanos e os outros”, decidindo o que vai acontecer. O problema desse tipo de análise é que ela tira da Síria e dos sírios qualquer tipo de agência. Qualquer pessoa que conhece a Síria sabe que ela tinha problemas estruturais claros e que os dez anos de presidência do Bashar Al-Assad vão construir as questões que desembocarão no levante de 2011. Havia a crescente presença do Estado na vida cotidiana das pessoas, sobretudo de forma repressiva. O Estado tinha mais recursos para repressão, o que começa a se construir a partir dos anos de 1990, quando alguns Estados árabes ganham dinheiro e armas dos americanos, franceses e mesmo de poderes locais, como os sauditas ou os iranianos, para conter as ondas de protesto, às vezes militarizados e violentos. Esses Estados usarão, então, esse dinheiro e essas armas para capilarizar o seu poder na sociedade e manter o status quo..
Além disso, os anos 1990 e 2000 são o período em que esses Estados fazem reformas neoliberais (a Síria faz isso em 2000) e passam a oferecer menos, cobrar mais, aumentar a repressão e, muitas vezes, a ter uma presença predatória na sociedade.
Esse é o caso claro da Síria: a partir de 2002/2003, você tem de pagar por serviços que antes eram feitos pelo Estado, mas você paga para um suposto mercado que na verdade é controlado por pessoas ligadas ao aparato do Estado. Um exemplo clássico é o primo do Bashar Al-Assad, Rami Makhlouf, que controlava as duas companhias telefônicas de celulares da Síria e quatro bancos, inclusive os bancos islâmicos. Ou seja, você tem uma aparência de mercado que nada mais é do que uma estrutura mafiosa, em que você tem que necessariamente pagar para os próprios governantes por serviços que não são mais prestados pelo Estado, mas também não são prestados num mercado de livre concorrência, e o Estado é usado para te forçar a entrar para esses serviços.
Isso tudo vai criando as condições para uma revolta política. Tradicionalmente, uma das chaves da sobrevivência desses regimes autoritários no Oriente Médio é que a intervenção na vida cotidiana das pessoas era tênue. Havia uma série de estruturas familiares, redes de solidariedade social que permitiam ao indivíduo circular, sobreviver na sociedade sem ter de lidar com o Estado. Claro, se você entrasse na arena política, você enfrentava a violência do Estado, que era enorme; então, se você consegue sobreviver sem entrar na arena política, por que entrar nela? Contudo, a partir desse processo, desses quase 20 anos de reformas tanto políticas quanto econômicas, você não consegue mais sobreviver longe do Estado, que começa a saber onde você está, onde está seu dinheiro, quanto você tem, e começa efetivamente a fazer a retirada desses recursos da sociedade, o que vai aumentar a necessidade de os indivíduos se expressarem dentro do campo político. E a Primavera Árabe é exatamente isso, essa explosão da sociedade no campo político. Se antes as pessoas não protestavam porque podiam perder a sua vida por conquistas que na verdade não mudavam muita coisa, a partir de 2010, é clara essa sensação de que, se você não protestar, tanto a dimensão repressiva quanto a dimensão predatória do Estado em relação à sociedade não terão limites.
Se você olhar para o mundo árabe, você vai ver diferentes dinâmicas, diferentes respostas. Em alguns países isso leva à ruptura, como na Tunísia, no Egito, no Iêmen. Em outros lugares você vai ter o status quo político fazendo mudanças, muitas vezes cosméticas, para diluir as demandas, como no Marrocos, na Jordânia, em Oman, nos Emirados Árabes, onde você vai ter uma série de reformas políticas e econômicas que de certa maneira esvaziam os protestos rapidamente e permitem que o status quo continue, dentro de outros termos. No caso da Síria, ironicamente, o governo de Bashar Al-Assad poderia ter feito essa opção, ele tinha a popularidade suficiente e o início dos protestos pedia reforma (reforma era o mote do regime desde 2000) e não o fim do regime.
No entanto, houve a decisão de resolver o conflito através da via militar, de utilizar somente a repressão. Claro, é produzido todo um discurso de diálogo, o fim da lei de exceção, o fim dos tribunais de exceção, etc., mas isso num contexto em que as cidades estavam sendo bombardeadas, em que as pessoas estavam sendo assassinadas por grupos paramilitares. Nesse contexto, o discurso de reforma era vazio de significado.
Essa situação de insurreição civil dura até meados de 2011, quando os soldados começam a desertar do Exército, levando suas armas, e formam os primeiros grupos militares da oposição.
E a militarização da oposição, de certa maneira, favorece o regime, porque ele é mais forte e justifica o uso da força militar contra a oposição. A militarização dos protestos também desloca o foco do movimento civil para os grupos militares de oposição. Assim, ironicamente, todo o movimento de protesto civil começa a ser apagado em prol dos grupos militares, que vão precisar de dinheiro e armas para enfrentar o regime.
Isso abre caminhos para os financiadores internacionais começarem a intervir na lógica do conflito sírio. Ironicamente, são os financiadores europeus e, principalmente os Estados Unidos, que são muito reticentes em dar armas para a oposição, enquanto que a Arábia Saudita, Qatar e a própria Turquia não têm nenhum problema em armar e financiar a oposição. Obviamente a Europa e os Estados Unidos estão receosos pela experiência no Afeganistão, onde essas armas e esse treinamento militar vão gerar todo um movimento militante sobre os quais eles não têm mais controle. Então, rapidamente, dentro do conflito sírio você também tem o declínio dos grupos armados com um projeto político nacionalista e a ascensão de grupos armados com um projeto político ou jihadista ou do islã político, mas principalmente jihadista; e isso também permite que os jihadistas que tinham passado pela Síria para entrar na guerra civil iraquiana voltem e comecem a formar grupos. E é em 2014 que o Estado Islâmico (ou DAESH, ou ISIS), um grupo que responde à marginalização dos sunitas no Iraque, vai para a Síria e encontra terreno fértil, principalmente, na região do Eufrates, uma região que estava submetida a toda violência militar da parte do regime. O que esses grupos fazem é dar uma aparência de ordem para essas populações que simplesmente não conseguem mais viver sob violência militar contínua no seu dia-a-dia.
D: O que sustenta o regime sírio dentro desse caos todo?
PP: No caso da Síria, há vários fatores: um deles é que a oposição não conseguiu produzir uma insurreição em massa em nível nacional. A Síria permaneceu uma sociedade dividida não só em linhas políticas, mas em linhas de classe social e linhas de identidade religiosa. As classes médias e a burguesia comercial e industrial de Damasco e de Alepo tinham se beneficiado das reformas neoliberais e da proximidade de Bashar Al-Assad, então elas não vão se rebelar. A revolta começa como uma revolta dos pobres, camponeses e operários. Você vê o mapa da revolta e são áreas rurais, cidades pequenas e médias e cidades industriais, como Homs, que entram em revolta, que eram os antigos pilares do sistema que serão marginalizados nos 10 anos de reforma neoliberal. Além disso, mesmo as classes médias urbanas, que também sofriam com o caráter repressivo do Estado, olhavam para a revolta e temiam duas coisas: primeiro, não se identificavam com uma revolta, com um projeto político que começa em regiões consideradas, no imaginário social sírio, como menos desenvolvidas, menos sofisticadas. Várias pessoas que eu conheço em Alepo falavam “não é possível que essas pessoas tenham um projeto político real, ou que elas saibam o que é democracia, porque elas vivem em outra realidade, coisa que nós em Alepo sabemos exatamente”. Mesmo pessoas que eram opositoras ao regime não se identificavam por conta de divisões de classe, claro, e de visões entre rural e urbano. Outra coisa que essas classes médias temiam é que uma revolta das classes mais desfavorecidas trouxesse de volta o socialismo, que tinha acabado de ser temperado pelas reformas neoliberais e com o qual eles também não se identificavam.
O regime foi muito hábil em explorar essas divisões, ao introduzir a dimensão sectária logo no início, afirmando que era uma insurreição de grupos jihadistas, islâmicos, da Al-Qaeda, etc., o que mobilizou todos os medos das minorias religiosas na Síria, principalmente os cristãos e os próprios alauítas [minoria religiosa à qual o presidente Assad pertence], que tradicionalmente já apoiavam o regime, visto como um suposto bastião do secularismo, muito embora o regime nunca tivesse tido nenhum problema em mobilizar a religião em causa própria.
Quando acontecia um protesto numa cidade mista, como Banias, onde há alauítas, sunitas, cristãos e drusos, logo em seguida, os bairros sunitas eram bombardeados, as milícias paramilitares eram soltas e havia uma visibilidade da violência. Nos membros das minorias, a violência era distribuída de forma diferente, de forma privada, oculta, através da polícia secreta. Todas as igrejas cristãs, por exemplo, compraram esse discurso sectário e se aliaram ao regime. Uma vez que você abre o espaço do debate, vários clérigos sunitas também acionam um discurso extremamente sectário, ao tentar disputar o poder dentro do campo da oposição. Os discursos sectários retroalimentam os medos sectários das minorias, que vêem no regime a única salvação. E dentro do campo da oposição, os protestos vão se tornando cada vez menos mistos, cada vez mais sunitas, porque os opositores das minorias ou são silenciados pelas suas famílias e pelas suas comunidades ou começam a se sentir extremamente desconfortáveis com os discursos sectários que também saem do campo sunita. Então, o sectarismo no conflito sírio é uma profecia autorrealizável que foi primeiramente pronunciada pelo próprio regime. O regime é diretamente responsável por essa dinâmica. E a crescente radicalização, o crescente sectarismo em grupos como o ISIS são perfeitos para o regime porque ele pode apontar para eles e dizer “bom, eu não disse? Taí, é isso que produziu os protestos”.
Outra coisa que o regime faz é a estratégia clássica baathista [do Partido Ba’ath, ao qual o presidente Assad pertence], que revela justamente essa opção pela militarização de qualquer conflito político. Logo no início do conflito, ele abandona todos os territórios que a oposição efetivamente controla e se concentra em Damasco. A partir de então, ele declara guerra ao país e vai conquistando militarmente todos os territórios, que foi o que o Saddam Hussein fez. O Saddam Hussein chegou a perder, depois de 1991, 15 das 18 províncias iraquianas e um ano depois ele era o senhor absoluto do Iraque. Só que o regime sírio tinha um grande problema, ele não confiava no seu próprio exército, porque os soldados estavam se recusando a atacar os civis. Então, a situação é de um país em guerra civil cujo exército fica praticamente todo aquartelado, tornando o regime militarmente incapaz de reconquistar o território. Por isso, o grau de destruição, pois, sem homens para ocupar o território, o regime optava pelos bombardeios. E aí o drama das cidades sírias é que tanto oposição quanto regime começam a usar as cidades como mera área estratégica militar. A oposição ocupa um bairro, o regime bombardeia o bairro, a oposição se retira. E aí se instaura esse ciclo de destruição, o que explica o enorme custo humano desse conflito. Isso vai mudar a partir de 2013, com a entrada do Hezbollah e do Irã diretamente no conflito, quando acontecem as reconquistas de território.
D: Agora nós chegamos à questão dos sírios em situação de refúgio. Como você vê a forma com que o Oriente Médio, a Europa e o Brasil têm lidado com isso?
PP: A questão dos refugiados é uma grande tragédia, uma das maiores tragédias humanitárias desde a Segunda Guerra Mundial. Numa população de 20 milhões de pessoas na Síria, 11 milhões estão deslocadas. Fora da Síria, há de 4 a 5 milhões de pessoas que fugiram do conflito e, dentro da Síria, há 6 milhões de pessoas deslocadas. É muita coisa, é realmente uma catástrofe absoluta. Os países no entorno fazem a recepção dentro dos seus limites, com todos os problemas que os refugiados enfrentam hoje em dia. No Líbano, por exemplo, os sírios não podem ter campos de refugiados, então eles vivem precariamente. Há toque de recolher, quando os refugiados sírios não podem estar fora de suas casas depois das 5 ou 6 horas da tarde, o que obviamente inviabiliza ter qualquer emprego, já que eles estão em acampamentos perto da fronteira síria ou em cidades pequenas onde é mais barato morar.
A Turquia tem enormes campos de refugiados, a Jordânia também. A comunidade internacional respondeu com ajuda humanitária bastante inadequada no início. O único momento de ação que teve algum impacto real foi quando a Angela Merkel abriu as fronteiras alemãs, e entrou cerca de 1 milhão de pessoas na Alemanha. Os Estados Unidos pouco fizeram e pouco receberam em termos de refugiados. A maioria dos países não quer receber os refugiados sírios, que são vistos como suspeitos, como se fossem responsáveis pelos ataques terroristas que houve na Europa. Aliás, coisa que não é comprovada, pois não há nenhum refugiado efetivamente participando de nenhum deles.
E, no caso do Brasil, o que existe é uma retórica de acolhimento aos refugiados e não uma política de acolhimento. Há críticas ao Brasil dizendo “você não pode dizer que está de braços abertos e exigir dez documentos de um refugiado para ele conseguir um visto”. Então o Brasil muda isso, facilita a entrega de vistos. Porém, ainda assim, o número de refugiados que chega ao Brasil é muito pequeno. Dois mil, três mil refugiados são absolutamente nada. Mas por quê? Porque, uma vez que eles chegam aqui, são entregues à própria sorte ou a instituições da igreja católica, como a Cáritas. Então, não é um país atraente para os refugiados. Aqueles que vêm para cá, geralmente, são homens jovens, que podem “se virar” de alguma maneira aqui e também para quem a situação, tanto dentro da Síria quanto nos países do entorno, é extremamente perigosa. Os homens jovens são o alvo do recrutamento e também da violência do conflito.
Tanto o Brasil quanto a Argentina não têm uma política de refúgio, eles têm uma retórica de acolhimento, que não se traduz efetivamente em uma política clara de acolhimento dos refugiados.
Portanto, não são destinos pelos quais os refugiados se interessam, ao contrário dos países que possuem política de refúgio, como a Alemanha e a Suécia, basicamente.
PARA SABER MAIS:
PINTO, Paulo G.; LOGROÑO-NARBONA, M. (Org.) ; KARAM, J. (Org.). Crescent Over Another Horizon: Islam in Latin America, the Caribbean and Latino USA. 2. ed. Austin: University of Texas Press, 2016.
PINTO, P. G. H. R.; DUPRET, B. (Org.) ; PIERRET, T. (Org.) ; SPELLMAN-POOTS, K. (Org.). Ethnographies of Islam: Ritual Performances and Everyday Practices. 2. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2013.
PINTO, P. G. H. R.. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. 1. ed. Aparecida: Santuário, 2010.
PINTO, P. G. H. R.. Árabes no Rio de Janeiro: Uma Identidade Plural. 1. ed. Rio de Janeiro: Cidade Viva Editora, 2010.
SOBRE O AUTOR:
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto é PhD em Antropologia pela Boston University, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF e coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM/UFF). Realizou trabalhos de campo na Síria, Tunísia, no Iraque, Marrocos, nas comunidades muçulmanas no Brasil e no Paraguai. Atualmente, desenvolve trabalho de campo com membros das comunidades sufis de Alepo dispersos pelo conflito na França, Alemanha, Jordânia e no Líbano.