Um ano após o atentado ao periódico Charlie Hebdo, antropólogo traz reflexão sobre as tensões entre política e religião, a partir de sua experiência no Marrocos

Por Bruno Bartel

Após o atentado ao periódico francês Charlie Hebdo, a 7 de janeiro do ano passado, o tema da liberdade de imprensa retornou ao espaço público marroquino acionado pelas publicações das charges contendo a figura do profeta Mohammed. A edição do semanal satírico que se seguiu ao evento ocorrido em Paris trouxe consigo a célebre frase “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) em apoio às vítimas do massacre. Tal síntese acabou não apenas funcionando como um símbolo de defesa à liberdade de impressa na França, mas também reforçou o debate sobre as múltiplas formas de presença do Islã no país. Porém, dessa vez, com o cuidado de se evitar referências islamofóbicas.

O apoio de diversos países do mundo ao atentado em solo francês representou um ganho de aliados na luta contra o radicalismo islâmico na Europa. Entretanto, algumas divergências políticas relativas aos pormenores do que se define como os limites dessa liberdade de imprensa do “Ocidente” novamente foram levantadas por países do Oriente Médio, Norte da África e pelas demais nações onde a religião islâmica é majoritária.

No Marrocos, a circulação do número 1178 do Charlie Hebdo, que portava a imagem do profeta Mohammed com um cartaz onde se podia ler “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) e com o título extra de “Tout est Pardonné” (Tudo está Perdoado), numa referência ao ocorrido com os cartunistas, foi proibida pela monarquia Alauíta de Mohammed VI (no poder desde 1999). O rei, inclusive, se recusou a participar da marcha organizada em Paris, que contou com líderes de diversas nações em solidariedade a François Hollande. Além disso, o periódico marroquino MarocHebdo estampou em sua capa, dois dias após a edição do Charlie Hebdo, uma imagem contendo milhares de muçulmanos em peregrinação a Meca (cidade sagrada para a religião islâmica) com a frase: “Je suis mahométan” (Eu sou maometano).

Embora o conteúdo da revista criticasse o uso da violência contra os cartunistas, reforçando a imagem de um Marrocos combatente aos grupos ligados ao fundamentalismo islâmico delineado pelo “Ocidente”, a exposição da figura do profeta Mohammed em um jornal satírico não deixou de ser apontada como uma possibilidade real de incitação ao ódio por parte de alguns marroquinos. Logo, o que se veria ao longo de todo o mês de janeiro de 2015 seria uma série de debates nos meios de comunicação do país (televisão, rádio, internet e mídia impressa) sobre os limites do uso da imagem do Profeta e as razões de o “Ocidente” querer representá-lo. As argumentações religiosas atuantes na mídia marroquina reafirmaram a impossibilidade de se fazer o uso da representação de Mohammed, devido ao seu caráter sacro, e exigiram também um compromisso da comunidade marroquina que vive na França de repudiar quaisquer outros atos da mesma magnitude na Europa. Além disso, a tensão entre o que se define como liberdade de imprensa, inspirada em processos de secularização, e a capacidade de agência da religião em sociedades islâmicas, como no caso do Marrocos, fornece um contexto específico de imbricação e tensão entre política e religião.

Produções de alteridade

A capa pós-atentado do Charlie Hebdo não agradou à maioria das populações islâmicas. As autoridades religiosas (‘ulama) no Marrocos foram categóricas em criticar a publicação com a figura do profeta Mohammed estampada na companhia da frase “Tout est Pardonné” (Tudo está Perdoado). O rei Mohammed VI, denominado comandante da crença (amir al-um’minin), ou seja, uma espécie de “guardião” simbólico da religião islâmica do país, ordenou publicamente a proibição do jornal satírico em seu território como forma de contemplar aos anseios da elite religiosa.

Assim, a imagem do Profeta foi usada em favor da defesa dos valores religiosos marroquinos como uma forma de produzir uma distinção perante outros sistemas de crenças como, por exemplo, a laicidade francesa.

jesuischarlie

Figura 01 – Capa da Edição nº 1178 da Charlie Hedbo. 14 de Janeiro de 2015. Fonte: http://www.liberation.fr/societe/2015/01/12/mahomet-en-une-du-charlie-hebdo-de-mercredi_1179193. Acesso em 16 de Janeiro de 2015.

 

Figura 02 – Capa da Edição nº 1101 da MarocHebdo. 16 a 22 de Janeiro de 2015. Fonte: Foto do autor em 16 de Janeiro de 2015

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mas nem tudo se resumiu a repúdio por parte dos marroquinos. Dois dias depois do ocorrido, centenas de pessoas se manifestaram no centro da capital, Rabat, em protesto aos atentados. Convocados através das redes sociais, muitos manifestantes compareceram ao ato, na frente do prédio de um veículo de comunicação francês, vestidos de preto e com uma vela em memória aos mortos. Alguns também carregavam cartazes com mensagens “Je suis Mohammed, mais je suis Charlie” (Eu sou Mohammed, mas sou Charlie) ou “Je suis marocain mais je suis aussi Charlie” (Eu sou marroquino mas também sou Charlie). Entre os presentes, foi possível ver jornalistas, intelectuais laicos, militantes da esquerda e de organizações pró-direitos humanos e muitos professores universitários. O embaixador da França e outros diplomatas de sua delegação também compareceram ao protesto.

A disputa em torno da condenação ou da liberdade do uso da figura do Profeta se prolongaria durante todo aquele mês no país. A mídia promoveu uma série de debates, enquetes e opiniões públicas como uma forma de apresentar e de posicionar os diversos grupos políticos, religiosos e demais setores da sociedade civil. A produção dessas distinções se pautou na defesa expressa dos reais interesses ligados a cada grupo, mais uma vez a partir dos valores morais em jogo. As formas de controle, silenciamento e apagamento de um grupo sobre o outro foram notórias e expuseram os eixos de sacralidade do Profeta provenientes da imagem de um senso comum atuante sobre a religião islâmica. Entre discursos afinados com perspectivas voltadas aos valores normativos de um “Islã universal”, a partir do que se considera como uma “tradição”, e argumentos mais atípicos, centrados na crença de um “Liberalismo universal”, alguns meios de comunicação foram verdadeiros palcos de exibição de alteridades.

Limites do sagrado

As definições do que seria o “Islã”, o “muçulmano”, ou a “liberdade de expressão” foram os centros das disputas desses grupos que, a partir de seus valores (especialmente os do campo religioso), se posicionaram na sociedade marroquina.

Em primeiro lugar, a proibição do Charlie Hebdo e a contestação do uso da imagem do profeta Mohammed, por meio de uma revista parceira do jornal satírico francês, identificam o Marrocos como pertencente à comunidade islâmica, a umma. O processo de transnacionalização dessa “comunidade imaginada” produz uma percepção compartilhada de que os “muçulmanos” e o “Islã” estão sob ataques e necessitam de defesa.

A (re)invenção dos muçulmanos na Europa após os ataque de 11/09, através do rótulo de “terroristas”, faz com que seus praticantes criem novas fronteiras de diferenciação entre si.

Esses pertencimentos refletem os interesses dos grupos, mas também os posicionamentos dos indivíduos, consciente ou inconscientemente, com relação ao senso comum e às associações a determinadas alianças políticas.

Em segundo lugar, a questão dos marroquinos que vivem na França estabelece uma maior tensão para as “minorias muçulmanas” numa Europa cada vez menos tolerante com a presença do que se convém denominar de “Islã” e de suas formas de atuação (ora de invisibilidade ora de promoção no espaço público). A liberdade de expressão como valor caro ao “Ocidente” foi incorporada por grande parte da comunidade marroquina em solo francês, mas também encontrou vozes consoantes no Marrocos, e não somente na manifestação ocorrida na capital.

A significação moral contida nos discursos e nas práticas dos muçulmanos, tanto no Marrocos quanto na França, se move a partir de dispositivos advindos de várias fontes que formariam as suas “culturas”. Porém, as formas de se acionar esses valores são particularizadas quando o assunto é apresentar os contornos que fazem dessas fronteiras a sua raison d’être. Cada um procurou controlar a sua imagem diante do que disse ser o “outro”. A distinção continua a ser um princípio dinâmico à espera de outras configurações a partir dos contextos particulares das relações desenvolvidas entre os dois países.

Seja como for, o que o atentado em Paris parece indicar é a controvérsia entre projetos que envolvem a produção de alteridades. 

De um lado, a sacralidade da liberdade de imprensa que se impõe como um importante valor moral no processo de secularização francês. Já do outro, a sacralização da figura do profeta Mohammed cria as condições para se discutir as formas de poder que estabelecem os limites da liberdade de imprensa marroquina e a inibem de seguir um caminho nos moldes do “Ocidente”. No final das contas, a incomunicabilidade desses diversos domínios se configura como um obstáculo tanto na percepção quanto no trato das diferenças existentes entre o que se considera como sendo “sagrado”.

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Sobre o Autor:

 

Bruno Bartel é doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF), onde fez Mestrado também em Antropologia. Pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM), ambos da UFF. Desde 2012, realiza trabalho de campo no Marrocos.

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