Direto da Sérvia, Ariel de Almeida narra a crise dos refugiados no Leste Europeu e as consequências das medidas políticas tomadas pela União Europeia.
Ariel Pires de Almeida,
mestre em História Iugoslava pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Belgrado.
Andreja Milosavljevic,
estudante de jornalismo na Universidade Megatrend em Belgrado
A Sérvia é um pequeno país balcânico historicamente caracterizado como uma fronteira. Divide e une Leste e Oeste, Católicos Romanos e Ortodoxos, Cristãos e Muçulmanos. E não seria esta a sina de uma fronteira? Ela une ao mesmo tempo em que divide; acolhe ao mesmo tempo em que destroça. Nada mais fútil e terrível que a busca de pureza numa fronteira. A endemoniada nação eslava traçou seus próprios desmandos em nome da unidade nacional ao longo do século XX. Assim como Alemanha, Itália, Turquia, China e tantos outros, a Sérvia é um país cindido desde sua gênese. A unidade nacional é a mitologia da modernidade. Contraditoriamente, o Estado-nação mais carregado pela divisão interna é aquele que mais se agarra a esse conceito ideológico. É o notório caso alemão, dilacerado nas guerras religiosas dos princípios da modernidade e um dos últimos estados europeus a se unificar no século XIX – atualmente é um sistema federativo de dar inveja a qualquer norteamericano e de fazer cair o queixo de grande número de liberais brasileiros. Foi também o Estado-nação que mais próximo chegou do ideal da Grande Pátria, indivisível e pura, ocupando atualmente o centro da “federação européia”. Como é comum nas construções mitológicas nacionais, um inimigo externo unifica a vontade da nação. No caso sérvio, o turco.
Entretanto, a Sérvia surpreendeu aqueles atentos ao verão de 2015. O Estado sempre lembrado pelos horrores bósnios e fervores kosovares abriu suas portas para os refugiados árabes. Enquanto Hungria, Alemanha, Croácia, Áustria, Bulgária entrincheiravam-se em sua União, Belgrado recebia de braços abertos aqueles que estavam de passagem em direção ao seu novo e obscuro destino. O calor infernal das imediações da estação central da capital era um oásis entre as praias turcas e as cercas húngaras. Sírios, afegãos, iraquianos, paquistaneses refrescavam-se nas inúmeras fontes da antiga capital dos eslavos do sul.
O ano de 2015 assistiu a uma Europa dividida.
4 de Setembro;
“Esse trem vai para a Alemanha? Não, vai para um campo de concentração.”
O suposto diálogo entre dois refugiados sírios teria sido ouvido por um correspondente do The New York Times dentro de um dos carregados trens que cruzavam a Hungria em direção a Budapeste. Essa era a manchete principal do jornal sérvio Politika, um dos periódicos diários mais antigos e de maior circulação no país. Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro e seu partido de centro direita Fidesz – União Cívica Húngara –, encarregaram-se de encarnar o sanguinário László Bárdossye e o antigo partido fascista Cruz das Flechas, 70 anos depois. Cercas, celas, centros de concentração. De fato, a forma como os recém-chegados seriam recebidos nos próximos meses dera certa razão ao irônico e sombrio comentário. As cenas na fronteira húngara pareciam mais um cenário da Segunda Guerra. A celebrada União supranacional se feudalizava. Nas ruas de Budapeste, outdoors escritos em húngaro repetiam “Imigrantes, voltem para casa!” Era claro com quem Orbán dialogava: suas próprias massas. Seu apelo era pela defesa da Europa cristã frente às invasões bárbaras. Um futuro historiador teria dificuldade em discernir 2015 de 1015 nos discursos e comentários cruzadísticos contemporâneos. Entretanto, se há mil ou há quinhentos anos, a Europa se unia contra o inimigo maometano em comum, hoje se divide.
A aliança conhecida como Pacto de Visegrád, o V4, reuniu a vanguarda desta nova onda ultraconservadora europeia. Eslováquia, Polônia, Hungria e República Tcheca, com apoio tácito da vizinha Áustria, juntaram-se ao movimento de defesa da Europa Cristã contra os invasores muçulmanos. Seus clamores eram consonantes com o novo governo conservador britânico de David Cameron que ameaçava deixar a União. Os debates que giravam em torno da possível saída tanto da Grécia quanto da Grã-Bretanha possuíam um viés essencialmente econômico, porém a concomitância com a crise migratória levou a questão mais a fundo. O governo austríaco passou a pressionar a Grécia e os Estados peninsulares a se unirem ao V4 e fecharem a “Rota Balcânica”. Na Sérvia, o premiê Aleksandar Vucic voltava a afirmar que não trataria com gás lacrimogêneo a crise humanitária. Não faltariam insinuações públicas jocosas sobre seus vizinhos e antigos inimigos, em especial Bulgaria que, ao lado da Hungria, protagonizava os piores vexames internacionais que a UE passara desde sua criação. Para o primeiro-ministro sérvio, estava aberta uma oportunidade para mostrar uma face humana de seu país e talvez amolecer o coração alemão diante de pedidos incessantes para que fosse integrado ao bloco europeu.
Claro, havia muito de conveniência no discurso sérvio, afinal o pequeno Estado eslavo servia apenas como ponto de passagem às massas refugiadas. Não haveria, tampouco poderia haver, possibilidade de se asilarem no empobrecido país balcânico. Era um discurso cabível, entretanto. Especialmente em se tratando de um país cuja imagem se atrelava à lembrança do terrível conflito no crepúsculo do século XX. Se até então, imaginar um sérvio seria ter em mente Srebrenica, Kosovo, Saraievo, hoje a discrepância com os países do entorno é inescapável. Ao longo daquele verão, centenas de barracas circundaram a estação rodoviária de Belgrado. Famílias dividiam as fontes nas praças ao redor, buscando se refrescar e se banhar. Notavam-se, inclusive, os produtos de higiene que por ali ficavam para serem compartilhados por aqueles que precisavam. Conveniente ou não, a diferença entre as imagens da estação Keleti em Budapeste e da brutalidade e extorção policial na Bulgaria e as do centro de recepção de refugiados em Belgrado – Miksaliste – era no mínimo abismal.
Infelizmente, era só um lugar de passagem. O centro Miksaliste é um espaço carregado de passados dolorosos, pesando a tonelada das esperanças fúteis. Crianças desenham e dependuram suas jornadas, traçando o que poderia vir a ser, enquanto adultos curam suas chagas e buscam roupas, sapatos e uma sopa quente. Não é mais aquele tórrido verão. O inverno se aproxima. Dentre os voluntários, muitos estrangeiros em busca do exotismo balcânico, reina certo otimismo. Alguns vêm daqueles mesmos países onde a massa se tornara horda. Um jovem italiano confirma sua felicidade em fazer parte de um ambiente humano dentro de uma Europa cada dia mais sombria. Jovens sírios, afegãos, paquistaneses e iraquianos passam de cabeça baixa. Não há tanto otimismo em seu caminhar cansado, talvez por lembrarem o que se passou e estarem conscientes do que se passará. Para aqueles que não se dispõem a sofrer, é claro que estão apenas de passagem.
Entre verão e inverno, a Europa reencontrou sua unidade perdida. A expectativa de uma rigorosa estação talvez trouxesse consigo a esperança de que o fluxo diminuísse. De fato, houve uma diminuição, em especial na cobertura da crise. Enquanto isso, governos aproveitaram para acirrar mais o controle sobre suas fronteiras e pressionar os Estados da “Rota Balcânica” a fazerem o mesmo. Em novembro, a cúpula europeia consentiu em barrar aqueles em busca de refúgio econômico. Apenas imigrantes vindos de áreas afetadas diretamente por um conflito e com a devida documentação entrariam. Em geral, afegãos, sírios e iraquianos. Mesmo a Sérvia que, até então, fazia a pose de bom moço perante seus vizinhos, acatou a ordem. Com o entrincheiramento da União, milhares se viram presos na “Rota Balcânica”.
A Europa reencontrava sua unidade, mas não seria naquele tom humanista e fraternal com que havia se formado nas décadas anteriores.
Muitos daqueles que conseguiram pular as tantas cercas e arames farpados não gozariam um destino mais tranquilo. Alguns acabaram presos na Hungria e deportados de volta à Sérvia. Foi o caso de Daniel, um jovem paquistanês que agora trabalhava como voluntário em Miksaliste. A solução para o otimista rapaz foi buscar asilo na Sérvia e planejar sua futura travessia. Com um inocente sorriso, declamava seu amor ao país que o recebera e a seu povo. Entretanto, para a grande maioria, o destino não parecia se curvar a planejamentos.
A Macedônia se entrincheirou com tropas militares, seguindo a decisão sérvia. Mais de 14.000 se viram presos no que era antes apenas um entreposto, a pequena vila grega de Idomeni, sem recursos, abrigo ou condições sanitárias. Em março, conflitos se alastraram entre aqueles em busca de passagem e as forças cumpridoras da ordem. Por fim, a previsão gravada em setembro pelo jornalista americano no trem húngaro ganhou contornos sombrios de realidade. A Grécia se tornou um campo de concentração, um limbo entre o inferno dos conflitos intestinos asiáticos e o paraíso das oportunidades europeu. Em meio a lama e frio, aguardavam seu futuro incerto.
A ideia por trás da unidade européia era a transformação da fronteira de um lugar de conflito em um espaço de encontro. É nas fronteiras que as ideias nascem, morrem e se disseminam. Nelas também renascem. Na recente crise, o mundo assistiu atônito a uma nova demonstração da reação do Primeiro Mundo ao “Outro”. A ascensão de figuras até então secundárias, apesar de constantes, no cenário político e social europeu fez tremer aqueles ainda acostumados à reminiscência. Um culto ao esquecimento ronda essa nova Europa fracassada, aliado a uma contraditória e vulgar devoção ao passado mitológico cruzadístico. A Europa, conceito helenístico identitário construído em oposição ao pérsico asiático, enclausura-se novamente em torno de si mesma. Ironicamente, o Estado que naquele mesmo verão de 2015 sofria com a jocosa premissa de austeridade européia, acabaria castigado, vendo-se enjaulado em meio à horda de indesejáveis. A fronteira é onde a vida encontra a morte. Onde as ideias nascem e morrem. Por fim, a ideia de Europa nasceu e morreu na ensolarada costa helênica.