A pesquisadora Cecilia Baeza traz o relato de um sírio de origem palestina sobre sua trajetória até o Brasil

Por Cecilia Baeza

No último 17 de junho, a BBC revelou que o governo do presidente interino Michel Temer suspendeu as negociações que o Brasil mantinha com a União Europeia para receber pessoas deslocadas pela guerra na Síria. A finalidade dessas negociações, iniciadas na gestão do ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, era obter recursos internacionais para ajudar o país a receber cerca de 100 mil refugiados da Síria – 20 mil por ano por uma duração de 5 anos. A suspensão foi ordenada pelo novo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo os diplomatas entrevistados pela BBC, a decisão segue uma nova postura do governo quanto à recepção de estrangeiros e à segurança das fronteiras.

No ano passado, a presidente Dilma Rousseff disse que o Brasil estava de “braços abertos” para acolher refugiados. Em 2013, o governo adotou um decreto para facilitar o ingresso de sírios ao permitir que viajassem ao país com um visto humanitário, abrindo assim uma rota legal para os candidatos ao refúgio.

Mas qual é o lugar do Brasil nas estratégias migratórias dos refugiados sírios e palestinos da Síria? Como os refugiados enxergam o Brasil como país de acolhida? A forma como a mídia global relata a situação dos refugiados baseia-se essencialmente num discurso de vitimização, no qual os sírios constituem a mais recente onda dea “mar miserável da humanidade”, como o coloca a antropóloga Liisa Malkki.

A tragédia da guerra e do desloccolamento forçado é inegável, mas se limitar a essa percepção leva, segundo Malkki, a des-historicizar a situação dos refugiados e fazer deles uma categoria genérica e muda.

O Brasil como destino: uma escolha?

Para a maioria dos refugiados, o Brasil não foi o primeiro destino imaginado naquelas primeiras reflexões e discussões familiares sobre aonde ir na hora de sair da Síria. Longe, sem grande imigração árabe e muçulmana recente, com uma língua que quase ninguém fala no Oriente Médio: o Brasil tinha, para a maioria, barreiras que pareciam intransponíveis. Fora do futebol – a seleção brasileira é muito popular no mundo árabe – o Brasil no Oriente Médio tem, aliás, uma imagem de país violento e perigoso.

Por mais surpreendente que possa parecer considerando o contexto de guerra na Síria, muitas mães estavam preocupadas pela ideia de ver seus filhos irem para o Brasil.

Como muitos comentaram, a Síria antes da guerra era um país muito “seguro” do ponto de vista da vida cotidiana – uma segurança própria dos contextos autoritários. A violência social – os roubos, os assaltos, etc.  – evoca perigos de natureza muito diferente dos da violência política da guerra.

Uma minoria tinha parentes já morando no Brasil há décadas, mas, mesmo assim, o gigante sul-americano não liderava a lista dos destinos desejados. Os países vizinhos – principalmente o Líbano e a Turquia – representam sem dúvidas a primeira opção dos candidatos ao exílio, pela facilidade logística e sobretudo porque parece deixar aberta a possibilidade de um retorno. Emirados Árabes Unidos e Egito são também muitas vezes mencionados nas experiências dos refugiados. Porém, as dificuldades para obter condições regulares de trabalho assim como, no caso do Egito, o endurecimento das condições políticas depois do golpe militar de junho 2013, fizeram com izeram com qque esses países se tornassem cada vez mais inóspitos para os refugiados da Síria.

Quais são as opções restantes? Para muitos, o caminho para chegar até a Europa é arriscado demais. Os sucessivos relatos de naufrágios no Mediterrâneo desanimaram muitas famílias em empreender essa viagem. Fugir de um país em guerra para arriscar a vida parece, para muitos, algo absurdo.

Por outro lado, numerosos refugiados mencionam o racismo e a islamofobia como um fator repulsivo das sociedades europeias.

A sociedade brasileira, mesmo com condições socioeconômicas mais duras, é unanimemente percebida como mais acolhedora. Para outros, finalmente, o Brasil aparece como uma etapa, uma plataforma, para tentar continuar a viagem para a Europa.

Esse artigo apresenta alguns trechos de um projeto de pesquisa internacional que visa a dar a voz aos próprios refugiados. Trata-se, através de uma abordagem etnográfica e comparativa, de mostrar a capacidade de ação (agency) dos refugiados da Síria apesar das restrições impostas pelos diferentes contextos de acolhimento. O grupo de pesquisa integra vários estudos de casos, incluindo países como Egito, Turquia, Dinamarca, França e Brasil. As dinâmicas de recepção variam muito de país para país, entre acolhida, rejeição ou até repressão, como no caso egípcio. O objetivo da pesquisa é aprofundar e questionar a compreensão teórica da condição de refugiado (refugeeness), e explorar as estratégias de ajustamento, integração, ou resistência desenvolvidas pelos refugiados eles mesmos. Apresento aqui, então, todas essas questões a partir dos relatos de Jalal, um refugiado sírio de origem palestina que conheci no Brasil:

História de Jalal

Eu cheguei no Brasil em dezembro de 2014. Como você vai ver, minha história é complicada. Para entender, tenho que te contar toda a história… (…)

Nasci na Líbia… meu pai era refugiado palestino no Líbano, do campo de Ein el Helwe, e minha mãe, palestina da Síria, do campo de Yarmouk. Somos seis irmãos, eu sou o mais novo. Meus pais se instalaram na Líbia na década dos 70 por razões de trabalho, antes ou pouco tempo depois do início da guerra no Líbano. Meu pai era contador, e como você sabe, não é fácil para palestinos trabalhar no Líbano… Nossa situação era boa até 1993. Aí Muammar Khadafi arruinou a vida dos palestinos morando na Líbia. Como ele se opunha nos Acordos de Oslo entre palestinos e israelenses, falou “então, agora que vocês [os palestinos] têm um país, podem ir para lá!”. Claro, isso era impossível já que Oslo não resolveu a questão do direito ao retorno dos refugiados, mas mesmo assim, ele cancelou as autorizações de trabalho dos palestinos. Meu pai foi demitido, e não tivemos mais opções do que ir embora.

Meu pai não queria ir para a Síria, porque não gostava de Hafez el Assad, ele conhecia a situação política lá… Então fomos para Ein el Helwe… mas não podia dar certo, pela questão do trabalho… Finalmente minha mãe convenceu meu pai de ir para Yarmouk, onde ela ainda tinha toda sua família. Parecia mais fácil, parecia que íamos ter mais oportunidades. Porém, nossa vida continuou com problemas, porque como meu pai era refugiado palestino do Líbano, ele não tinha direito a ter residência legal na Síria. Mesmo casado com minha mãe! Nós, seus filhos, estávamos na mesma situação. Moramos durante anos irregulares na Síria. Tentamos mil vezes resolver nosso caso com a administração, mas lá não tem jeito… Se você não tem um contato com um Mukhabarrat [i.e. agente da segurança do estado], não pode fazer nada… O fato de não ter documentos não nos impediu de estudar, eu por exemplo estudei na uUniversidade e me formei como engenheiro químico. Mas para trabalhar já é outra coisa… É impossível conseguir um emprego numa empresa grande… só em empresas pequenas, e sem nenhum direito. (…)

Quando começou a revolução, eu fiquei muito feliz. Seguia todo dia pelo Ffacebook, e participei algumas vezes nas manifestações entre 2011 e 2012, em Al Midan, um bairro perto de Yarmouk em Damasco. Mas virou rapidamente muito perigoso… eu vi pessoas morrer na minha frente porque tinha snipers disparando contra os manifestantes… Não falava para minha família que eu participava… Pouco a pouco a situação foi se degradando… Perdi meu emprego no laboratório farmacêutico onde trabalhava porque a fábrica deles em Daraya foi bombardeada. (…)

Nossa família tomou consciência da proximidade do perigo quando, pela primeira vez, em agosto de 2012, um ataque de morteiro atingiu Yarmouk e fez mais de vinte mortes. Até então Yarmouk ficava preservado, mas o regime fez tuodo para nos envolver dentro da guerra. Eu fui ajudar os feridos… Lembro-me de  ter sentido pela primeira vez nda minha vida o cheiro doa sangue humanoa… Foi uma coisa horrível… (…). Eu não sabia mais o que mais fazer… Tomar as armas ou fugir? Tomar as armas era muito perigoso, era decidir morrer ou matar… (…)

Em setembro 2012 finalmente fomos embora. (…) Com a ajuda de parentes, nos instalamos no campo de Ein el Hilweh. Aí, de novo, começou o problema para obter uma autorização de trabalho. Tentei durante meses e meses, mas não consegui nada da administração libanesa. Também os empregos, mesmo não declarados, eram escassos. (…)

Eu não queria sair do mundo árabe… queria morar num país árabe mesmo… Decidi ir para os Emirados Árabes Unidos, onde meus outros dois irmãos estão instalados desde antes da guerra na Síria. Cheguei com um visto de curta duração, que me permitia unicamente visitar seus meus irmãos, mas não trabalhar. Durante um ano e meio, trabalhei irregularmente nos Emirados ao mesmo tempo que tentava obter uma residência legal. Mas não consegui: os serviços de imigração negaram meu pedido, e me disseram claramente que “os Emirados não querem refugiados da Síria”. Meus salários serveramserviram apenas para pagar a multa de 6000 USD que acumulei por permanência irregular no país. Minha situação começou a se tornar um problema para meus irmãos, e por isso decidi voltar para o Líbano. (…)

Continuei tentando obter uma autorização de trabalho no Líbano e também nos Emirados, mas nada dava certo. Minha família estava numa situação muito, muito difícil. Meus dois irmãos maiores optaram por tentar o caminho até a Europa, o primeiro pela Líbia, e o segundo via Sudão e depois a Líbia. (..) A viagem foi muito perigosa, foi pior ainda para aquele que teve que passar pelo Sudão… (…) Eles chegaram até a Itália, foi quase um milagre. Mas eles falaram para minha mãe, “por favor, não deixe o Jalal arriscar sua vida”.

Foi mais ou menos nesse momento que ouvi falar dos vistos humanitários para o Brasil. Um amigo me falou de uma estratégia, que era primeiro pegar o visto, viajar para o Brasil, e uma vez no aeroporto de Guarulhos, comprar uma passagem para a Malásia com uma companhia europeia, para viajar novamente e finalmente pedir asilo na escala num país europeu. Meu objetivo era tentar me reunir com meus irmãos. Para isso, eu precisava de um segundo passaporte, um da Autoridade Ppalestina, coisa que consegui. O passaporte palestino é porque as companhias não deixam viajar as pessoas viajarem para a Europa com documentos da Síria. (…)

Finalmente, pedi dinheiro emprestado e, n o dia 4 de dezembro de 2014, cheguei ano Brasil. Tinha só um pouco mais de dois mil dólares no bolso. Tentei comprar uma passagem para a Malásia, mas não deu… era muito caro… (…) Não sabia nada de português e não conhecia ninguém… Mas, por um contato do Ffacebook, obtive o nome de um hotel barato em São Paulo para ficar alguns dias. Consegui pegar sozinho um ônibus até Tatuapé e depois pegar o metrô! (…) Finalmente, meu plano não deu certo, não consegui viajar para a Malásia… e por isso fiquei aqui no Brasil.

As primeiras semanas são difíceis, mas a solidariedade e as redes de contatos entre refugiados sírios lhe permitiramu sobreviver com um lugar onde dormir e um primeiro emprego. Hoje, após um pouco mais de um ano e meio no país, Jalal tem todos seus documentos regulares, trabalha legalmente em um restaurante, fala português com fluência, e está no processo de revalidação do seu diploma. Umns dos seus irmãos conseguiu chegar também. Jalal reconstituiu com outros refugiados da Síria um círculo de sociabilidade, e sua imagem do Brasil, se transformou. Suas condições econômicas permanecem precárias, mas ele é otimista. Como ele concluiu: “Cecilia, hoje, pela primeira vez da minha vida, resido e trabalho legalmente em um país. Isso, para mim, é o mais importante.”

1- Os nomes foram mudados para preservar o anonimato das pessoas.

2- Até 2015, os refugiados palestinos no Líbano sofriam de severas restrições no seu direito ao trabalho e condições laborais. Dezenas de profissões e negócios eram reservados para pessoas de nacionalidade libanesa; os palestinos não podiam legalmente trabalhar como contadores, secretários, representantes, farmacêuticos, eletricistas, guardas, motoristas, cozinheiros ou cabeleireiros. Tampouco eram autorizados a ser o chefe de uma empresa que fazia comércio, câmbio, impressão, publicação, reparação de automóvel, engenharia ou serviços de saúde. Os palestinos podiam praticar a maioria das profissões ou possuir seu próprio negócio dentro dos 12 campos oficiais, mas as restrições se aplicavam em todos os outros lugares do Líbano.

3-  No mundo árabe, a nacionalidade depende exclusivamente do pai.

4- Facebook conheceu um boom na Síria a partir de 2010, apesar de ser proibido no país desde 2007.

5- O aeroporto de Trípoli fechou em julho de 2014 por questões de segurança, impedindo chegar na Líbia por via aérea.

Sobre a autora:

 

Cecilia Baeza é Doutora em Relações Internacionais pela Sciences Po Paris e Professora na PUC-SP e na FGV-SP.  Suas pesquisas tratam das migrações árabes na América Latina e se concentram tanto nas construções identitárias diaspóricas quanto nas mobilizações políticas.

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