Por conta de uma convenção assinada em 1951, a Turquia mantém os refugiados num limbo jurídico e os trata oficialmente por “hóspedes”.

  Por Monique Sochaczewski

     Acompanhamos ainda as investigações que trarão respostas mais confiáveis sobre os ataques de 13 de novembro em Paris. Nesta fase ainda de conjecturas, muito se fala do passaporte de um refugiado sírio encontrado junto aos restos mortais de um dos terroristas que se explodiu do lado de fora do Stade de France (estádio multi-uso construído na França para a Copa do Mundo de 1998). Ahmad Almohammad comprovadamente passou pela Grécia e pela Sérvia. Resta saber se de fato o morto era o refugiado sírio, mas pairam poucas dúvidas que o verdadeiro Ahmad teria passado pela Turquia para chegar à Grécia. Essa vem sendo a rota da grande maioria dos refugiados sírios que fogem desesperadamente do conflito inciado em 2011.

       Desde o início do conflito na Síria até agora, cerca de 2 milhões e 200 mil sírios entraram em território turco. Aqueles com mais recursos se estabeleceram em cidades mais afinadas culturalmente, como Mardin, no sudeste turco. Outros se assentaram em cidades relativamente próximas à fronteira, como Gaziantep, inflacionando os preços de imóveis na região.

        Com o tempo, começaram a chegar aqueles com menos recursos e se espalharam por todo o país, chegando mesmo em Istambul, onde não é raro ver refugiados vendendo miudezas, se exibindo como dançarinos ou músicos em troca de moedas em locais turísticos da cidade como Sultanahmet e Istiklal Caddesi, ou mesmo pedindo esmolas. Milhares vivem ainda nos mais de vinte campos de refugiados. Dois terços desta população é de mulheres e crianças.

       Nos últimos meses, porém, muitos refugiados já não buscavam mais se assentar na Turquia, mas passaram cada vez mais a usá-la como passagem para chegar à Europa. Ultrapassaram a pé as fronteiras com a Grécia e a Bulgária, ou buscavam desesperadamente chegar às ilhas gregas em embarcações precárias.

“As empresas aéreas que transportarem imigrantes sem documentação adequada devem pagar todo o custo de levá-los de volta”

         O menino Aylan Kurdi, vítima de um acidente com um barco e cujo corpo foi achado numa praia do badalado balneário de Bodrum, acabou se tornando um símbolo desses refugiados desesperados, além de uma espécie de apelo que fez com que a opinião pública internacional finalmente se desse conta de um drama que os turcos – assim como libaneses e jordanianos – já testemunhavam há anos.

          O que faz com que não queiram mais ficar na Turquia e se arrisquem em barcos precários e em longas marchas para chegar à Europa? Por que não pegam afinal os voos baratos de empresas de baixo orçamento para capitais europeias? De que fogem com tamanho desespero?

           Está cada vez fica mais difícil achar moradia e trabalho no país, frente à quase saturação de refugiados (há ainda cerca de 300 mil iraquianos no país). Fica cada vez mais claro também que não haverá uma Síria para onde voltar e então ficar próximo ao país natal, na esperança de que ele se acalme, deixa de fazer sentido. Vale lembrar ainda que o inverno se aproxima.

           Há passagens de empresas como a Pegasus por cerca de 50 euros, para as principais cidades europeias, muito mais baratas do que os cerca de 2.500 euros que pagam a atravessadores. Os refugiados, porém, vão a pé ou de barco para a Europa por causa da legislação que combate a imigração ilegal. Com base nela, as empresas aéreas que transportarem imigrantes sem documentação adequada devem pagar todo o custo de levá-los de volta ao país de origem. Os refugiados, portanto, não passariam dos check ins nos aeroportos.

            Fogem com tanto desespero, sobretudo, dos ataques de bombas de barril perpetrados pelo governo de Bashar al-Assad e aliados. Fogem também do grupo armado Estado Islâmico que, ao contrário do que este anuncia, não demonstra com seu pretenso califado ser uma alternativa de interesse da população síria.

Os que ficam na Turquia encaram diversas dificuldades, desde a lida do governo em relação a estes até atritos crescentes com turcos. Trata-se de uma crise multinível. Se por um lado o governo  turco vem arcando com a quase totalidade dos custos da absorção dos refugiados (a ajuda internacional, sobretudo europeia, tem começado a chegar mais amplamente nos últimos meses, por conta da crise no último verão de lá), por outro os faz vivenciar uma espécie de limbo jurídico. Os sírios em território turco, apesar de claramente serem refugiados são chamados de “hóspedes”. A Turquia assinou a Convenção dos Refugiados de 1951 com limitação geográfica, só aceitando como refugiados os que vinham da Europa. Se os sírios forem reconhecidos como refugiados o Estado teria que arcar mais amplamente com sua absorção e afins. Recebem proteção temporária, mas não têm garantidos residência legal e permanente, e melhores perspectivas de emprego.

Vale ressaltar que apesar de dramática, a questão atual dos refugiados em território turco não é exatamente nova. Há um longo passado otomano de acolhimento de refugiados: judeus expulsos da Península Ibérica no final do século XV, em fuga dos pogroms russos no final do XIX e também do nazismo; circassianos sobreviventes de massacres no Cáucaso; nacionalistas poloneses e húngaros no século XIX; russos brancos quando da Revolução de 1917, entre outros tantos. A República da Turquia também foi fundada com refugiados turcos étnicos ou muçulmanos oriundos de Salônica, da Bulgária, de terras russas e com o fim da Guerra Fria acolheu búlgaros e bósnios.

É importante reconhecer o papel que o Império Otomano, no passado, e no presente a Turquia, representaram no acolhimento a refugiados fugidos de perseguições, massacres e guerras.

É importante reconhecer o importante papel que o Império Otomano no passado e a Turquia no presente representaram no acolhimento a refugiados que fugiam e fogem desesperadamente de expulsão, perseguição, massacres e guerras. Neste exato momento o país vive uma fase de grande tensão em relação aos curdos e os temores de que a tênue democracia perca mais forças ainda. Não há, porém, como não reconhecer o importante papel do país – do governo e da sociedade civil – em relação aos refugiados. Embora não se possa também esquecer o quanto o fato de ter permitido a porosidade em sua fronteira tenha acabado por ajudar o Estado Islâmico a receber recrutas, equipamentos e armamentos, bem como escoar petróleo. O drama sírio é também enormemente um drama turco.

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SOBRE A AUTORA:

 

 Monique Sochaczewski é doutora em História, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e colunista da REVISTA DIASPORA.

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