Revista Diáspora
Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

104 anos após o Genocídio, os armênios ainda lutam por reconhecimento

Pedro Bogossian Porto

O local é a Avenida Paulista, no centro de São Paulo; a data, 24 de abril. Quem passa desavisado pela região no começo da noite é surpreendido por uma movimentação atípica: muitas velas espalhadas pela calçada e dezenas (talvez centenas) de pessoas na rua, parte delas empunhando uma estranha bandeira tricolor. Trata-se de uma manifestação semelhante a outras, que acontecem no mesmo dia em diferentes partes do mundo: são armênios, que tentam manter viva a memória dos massacres ocorridos no território otomano entre 1915 e 1923 e que lutam para que eles sejam reconhecidos como um genocídio.

O debate em torno do conceito é acalorado: os armênios sustentam que houve uma tentativa de eliminá-los como etnia; a Turquia, herdeira do Império Otomano, rejeita o uso do termo e, mais ainda, não admite ser responsabilizada pelas perseguições. Segundo a narrativa turca, o que houve foram excessos localizados, e que não só fugiam ao controle das autoridades imperiais mas também seriam tão graves quanto os ataques realizados pelos armênios contra as demais populações do Império.

 

O Império Otomano em finais do século XIX

No final do século XIX e início do século XX, o Império Otomano era um Estado multiétnico, controlado politicamente pela população turca. Porém, nele viviam também curdos, assírios e armênios, entre outros grupos étnicos. O Estado estava, no entanto, em uma posição decadente, incapaz de proteger as suas fronteiras ou mesmo de manter a ordem interna. No plano externo, o Império vinha sendo sistematicamente derrotado em guerras contra países vizinhos ou potências estrangeiras, que lhe confiscavam territórios e impunham tratados humilhantes. No plano interno, as minorias étnicas – isto é, os grupos submetidos à dominação turca – organizavam levantes populares que, em muitos casos, provocavam a independência de grandes regiões dominadas. Frequentemente protegidas pelas potências estrangeiras, essa populações eram acusadas de serem responsáveis pela crise do Estado como um todo.

Esse era precisamente o caso dos armênios que, por disporem de uma elite intelectualizada e em sintonia com as teorias filosóficas e políticas européias, pleiteavam autonomia em relação ao poder central. Via de regra, as autoridades reprimiam de maneira violenta tais movimentos, motivando assim uma resposta também brutal por parte dos grupos agredidos. Isso levou a uma profunda intensificação da escalada de hostilidades e de ódio entre os envolvidos.

O extermínio dos armênios representaria, portanto, uma reação a inúmeros episódios percebidos como afrontas  à soberania otomana. Ao eliminar essa população, acusada de colaborar com os russos, as autoridades otomanas rechaçavam as tentativas de intervenção em relação ao que consideravam “assuntos internos”, sinalizando para as outras potências que não aceitariam ingerência nas questões nacionais. Ao mesmo tempo, o ataque à população armênia serviria de exemplo a outros grupos que tivessem pretensões separatistas e deixaria claro que tais demandas não seriam toleradas. Por fim, o extermínio representaria uma punição em relação aos ataques que haviam sido realizados por grupos armênios contra a população turca ou contra as estruturas do Império, que haviam alimentado o ódio dos grupos dominantes contra aquela minoria étnica.

 

“Solução” da questão armênia

A hostilidade em relação aos armênios – percebidos ao mesmo tempo como símbolo das aspirações separatistas das minorias étnicas e dos obstáculos à concretização de um Estado etnicamente homogêneo e como pretexto para a intervenção estrangeira no Império  – passou a ser resumida na expressão “questão armênia”, que se tornou comum entre intelectuais, políticos, meios de comunicação e diplomatas.

A primeira tentativa incisiva de “solucioná-la” foi feita ainda durante o governo do sultão Abdul Hamid II, que promoveu, entre 1894 e 1897, um massacre de armênios e assírios que vitimou de 100 mil a 300 mil indivíduos. Conforme apontado por James Bryce em 1889, o  massacre fazia parte da lógica de violência que marcava as atitudes do governo otomano em relação a sua população cristã. Parlamentar liberal inglês, Bryce afirmou que “a política do governo turco leva a crer que eles estão seguindo o princípio estabelecido por um primeiro ministro turco anos atrás, quando ele disse que o caminho para acabar com a questão armênia era acabar com os armênios”.

As atrocidades cometidas pelo sultão Abdul Hamid, retratado pela imprensa ocidental como “sultão vermelho”, passaram a ser denunciadas de maneira sistemática, inclusive por jornais satíricos na Europa. Todavia, mais do que suscitar uma efetiva intervenção diplomática que pusesse fim aos atos de violência, essas denúncias faziam aumentar dentro do Império a hostilidade contra as minorias étnicas, que eram responsabilizadas pelas pressões estrangeiras.

Foto: Frederico Boghossian, 24/04/2019.

Incapaz de manter a paz social, o sultão foi deposto em 1908 pelo Comitê União e Progresso (CUP), também conhecido como “Partido dos Jovens Turcos”, que assumiu o poder com a promessa de modernizar o Império. No entanto, em lugar de adotar os princípios dos Estados constitucionais europeus, o CUP deu continuidade à política de limpeza étnica, como forma de fazer coincidir Estado e nação. Assim, em 1909 foi realizado mais um massacre de armênios, que vitimou cerca de trinta mil indivíduos na província de Adana; entre 1915 e 1923 os massacres assumiram a forma de um verdadeiro genocídio.

 

O genocídio dos armênios

A entrada do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial ocorreu em novembro de 1914, quando o governo ordenou o ataque de forças russas no Mar Negro. Até então, as autoridades haviam oscilado entre a participação junto à Tríplice Aliança ou à Tríplice Entente; com o ataque, o Império se posicionava inquestionavelmente ao lado de Alemanha e Áustria-Hungria.

O contexto de guerra se revelou o cenário perfeito para o extermínio das minorias étnicas no Império Otomano, notadamente os armênios, gregos e assírios. Devido ao conflito internacional, as potencias rivais, cujos diplomatas haviam sido expulsos, não estavam em condições de manifestar seus protestos; por sua vez, as potências aliadas, receosas de melindrar o Império, fechavam os olhos para os ataques à população civil. Assim, em abril de 1915 foram tomadas as primeiras medidas do processo de extermínio de armênios, tentativa de “solução final” para a questão armênia.

Acusadas de atuarem em colaboração com o inimigo russo, as comunidades armênias no Império foram alvo de perseguições diretas. O marco inicial do genocídio foi a execução, em 24 de abril de 1915, de cerca de 200 intelectuais armênios, entre autoridades religiosas, ativistas políticos e outras figuras de destaque. Ao privar a população de seus principais líderes, o governo pretendia minar qualquer forma de resistência ao massacre.

Seguiu-se, então, o extermínio da população civil, no qual eram empregados meios diversos. Os homens adultos, muitos dos quais haviam sido mobilizados pelo exército otomano, eram forçados a trabalhar em condições extenuantes e, sem recursos adequados, raramente sobreviviam. Em diversos vilarejos, vulneráveis sem a sua população masculina, grupos rivais realizavam ataques e saques, sob o olhar complacente das autoridades locais. Em outras regiões, a população era convencida de que estava sob risco e era forçada a se retirar, supostamente para ser transferida para áreas mais seguras. Na maioria das vezes, porém, o deslocamento era uma marcha sem fim, frequentemente através do deserto, levando todos à morte  por inanição ou exaustão.

O extermínio dos armênios foi registrado em fotografias por Armin Wegner, soldado alemão que servia no território otomano. Em centenas de imagens, o soldado retratou essas intermináveis caravanas da morte, tornando-se o mais conhecido testemunho do genocídio. Suas fotografias mostram múltiplas faces da violência promovida pelo governo otomano: as famílias inteiras deslocadas, incluindo idosos e bebês; as covas comuns, preenchidas por dezenas de cadáveres; os corpos sem vida de vítimas da fome ou de mutilações, entre outras cenas macabras.

Foto: Frederico Boghossian, 24/04/2019.

Em 1915 não havia sido criado ainda o conceito de“genocídio”, que seria forjado ao longo dos anos 1920 e 1930 e ganharia força decisiva apenas após o Holocausto Judeu. Todavia, o extermínio étnico como estratégia de resolução de conflitos internos já figurava entre os projetos de Estado na Europa e sua periferia. No Império Otomano, armênios, gregos e assírios foram as principais vítimas dessa política de extermínio, que eliminou cerca de 1,5 milhão de indivíduos e logrou reduzir drasticamente a proporção desses grupos na população do Império. A maioria dos sobreviventes escapou dos massacres migrando para outros países da região ou mesmo para outros continentes.

No caso dos Armênios, esse movimento populacional provocou a formação de comunidades étnicas nos mais diferentes países, tais como Estados Unidos, França, Líbano, Argentina, Brasil, em uma diáspora profundamente heterogênea. Contudo, a despeito dessas diferenças, as comunidades armênias são unificadas pela memória do genocídio, que permanece viva e extremamente forte entre seus membros. As perseguições de 1915-1923, que foram a causa objetiva da formação dessa diáspora, atualmente servem como a causa coletiva pela qual lutam armênios de diferentes partes do mundo: a preservação da memória e o reconhecimento internacional desses massacres como um genocídio. A data de 24 de abril, assim, é o dia de homenagear todos aqueles que foram perseguidos e massacrados.

Para saber mais:

Ronald Grigor Suny, “The Hamidian Massacres, 1894-1897: Disinterring a Buried History », Études arméniennes contemporaines [En ligne], 11 | 2018, mis en ligne le 15 octobre 2018, consulté le 24 avril 2019. URL : http://journals.openedition.org/eac/1847 ; DOI : 10.4000/eac.1847

Sobre o autor:

Pedro Bogossian Porto, é mestre em Antropologia pela Univesidade Federal Fluminense. Possui bacharelado e licenciatura em Historia pela mesma Universidade e integrou o corpo editorial da Revista Eletrônica Cantareira (UFF). Tem experiência nas áreas de Antropologia e de História, com ênfase em Antropologia Urbana e História do Brasil, tendo atuado principalmente nos seguintes temas: identidades, memória, história oral e história do tempo presente. Atua como supervisor no subprojeto de História do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Principais áreas de atuação: Antropologia Urbana, Etnicidade, Identidade e Memória.

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