O antropólogo especialista em Líbano e atualmente em pesquisa de campo no Líbano, Leonardo Schiocchet, e a antropóloga e coeditora da Revista Diáspora, Liza Dumovich, empreendem uma análise sobre os protestos que tomaram o pequeno país do Oriente Médio nas últimas duas semanas.
Leonardo Schiocchet, de Beirute, e Liza Dumovich
Desde o dia 17 de outubro, o mundo vem testemunhando uma onda de protestos no Líbano que concorre ao título de uma das maiores revoltas populares da sua história. Inaugurados no centro de Beirute, os protestos rapidamente atingiram os subúrbios da cidade e, em pouco tempo, se estenderam até o norte e o sul do país. Inicialmente com apenas algumas centenas de manifestantes, os protestos rapidamente atingiram a soma de 1 milhão de pessoas e há quem defenda que esse volume tenha se aproximado de 2 milhões no seu auge. As principais ruas e estradas do país foram bloqueadas, enquanto bancos, escolas, universidades e grande parte do comercio permanecem fechados por quase duas semanas.
Inicialmente contra o anúncio de um acirramento da austeridade fiscal, os protestos prontamente se consolidaram como uma revolta. A demanda que encimava as reivindicações era a resignação de todos os políticos no poder sob o grito de guerra “Todos eles significa todos eles” (“kellon yaane kellon”), logo transformado em hashtag nas mídias sociais. Na esteira dessa demanda, surgiram outras exigências, como a convocação de novas eleições e a responsabilização da elite política por seus crimes de corrupção. A cobertura da mídia ocidental e de parte da mídia libanesa contribuiu para a consolidação das demandas de uma classe média liberal, cuja voz se sobrepunha às demandas mais difusas e heterogêneas da sociedade mais ampla, sobretudo, do grupos menos privilegiados e das regiões mais periféricas.
Desde sua independência, o Líbano tem sido governado pela mesma elite política e suas famílias, que têm logrado se manter no poder graças à mobilização de um sistema paternalista que se apoia no sectarismo religioso e funciona por intermédio de relações clientelistas. Soma-se a isso denúncias de corrupção e crimes eleitorais. Essa elite política coincide com a elite econômica do país, onde o 1% mais rico detém quase 25% de toda a receita interna, enquanto os 50% mais pobres ficam com aproximadamente 11%. Por isso, apesar de contar com um PIB de U$53 bilhões para uma população de menos de 7 milhões, o Líbano é um dos países mais desiguais do mundo, de acordo com relatório do World Inequality Database.
Projeções para os próximos meses demonstram um aumento da dívida pública, que já consiste em 157% do PIB, ocupando o lugar da terceira maior do mundo. Medidas de austeridade vêm sendo tomadas nos últimos anos, mas o anúncio do aumento de impostos sobre combustível e tabaco, além da taxação sobre chamadas de voz pela internet sobrecarregariam a já precária vida cotidiana no Líbano. Essa foi a gota d’água para grande parte da população.
Além da desigualdade econômica e da corrupção da classe política, a população libanesa sofre com uma profunda ineficiência e incapacidade do regime de lidar com antigos problemas: a falta de infraestrutura, como fornecimento de água limpa, rede elétrica de qualidade, coleta de lixo regular, e de serviços públicos básicos, como saúde e educação. O sistema político confessional, que classifica a população a partir de confissões religiosas e a força a ser representada por políticos da confissão a que pertencem, abre espaço para que um partido responsabilize o outro pela inaptidão em resolver os problemas econômicos e sociais, reproduzindo e acirrando as divisões sectárias dentro da população. No entanto, os libaneses estão cada vez mais conscientes do uso dessa estratégia pela elite política e muitos ativistas incluíram na lista de reivindicações o fim do sectarismo e a implementação de um sistema de democracia direta. O regime é insustentável, concluíram muitos.
Quanto mais pessoas e cidades libanesas aderiam ao grito de thawra, revolução, mais se consolidava a crença numa unificação da população sob a bandeira nacional contra o governo atual, a corrupção e o sistema confessional. Desde o primeiro dia, as manifestações foram caracterizadas por uma revolta popular e espontânea, desprovida de lideranças políticas e partidárias. A ausência de lideranças garantiria o sentido de unificação nacional, em que todos compartilhariam o desejo por mudanças profundas no sistema político e, consequentemente, na estrutura social, a despeito de diferenças de classe, religião e visão de mundo. Alguns ativistas e outros manifestantes rechaçaram as diversas acusações de um complô “ocidental” e de que potências estrangeiras estariam financiando o movimento popular; ou, ainda, que essa seria uma revolta, primariamente, contra o Hezbollah, um partido e milícia majoritariamente xiita (mas que conta com o apoio de uma parte da população cristã, e a interferência do Irã na política do Líbano). Para muitos, as lideranças surgiriam de dentro do próprio movimento, com um projeto político a partir de um diálogo entre diferentes posições e pontos de vista, a fim de substituir as velhas oligarquias no poder. Mas primeiro, era preciso derrubar o governo atual unicamente sob a bandeira libanesa.
No entanto, a grande questão é: as demandas comuns são suficientes para uma unificação e a implementação das transformações que estão sendo propostas? Como essa transição deverá, ou poderá, ser realizada na prática? Mais ainda, será que o problema do Líbano se resume à corrupção e inaptidão da sua elite política?
Uma perspectiva mais abrangente, que leve em consideração as nuanças da situação, precisa antes de mais nada atentar para a complexidade do tecido social libanês. A estrutura paternalista no Líbano é muito difusa e não está restrita, de modo algum, ao governo, que não concentra o poder de prover serviços básicos. Ela vai muito além da estrutura política e permeia toda a estrutura social. Uma de suas facetas, o clientelismo, envolve relações pessoais, de lealdade e mesmo de afeto. É no Líbano onde a figura do político patrono, o zaim, se materializa de forma mais contundente. O zaim é o líder político local, ligado a um território, grupo ou comunidade, que provê aos seus clientes bens e serviços de diversos tipos, na forma de favores (incluindo um cargo público ou um emprego numa empresa privada). O poder do zaim se baseia na lealdade dos seus clientes, de um lado, e na relação que mantém com as autoridades no poder, de outro, servindo como uma ponte entre o estado e o cidadão. Essa figura política, juntamente com o wasta (uma espécie de “pistolão”) e o sahb (patrão) pode ser considerada a pedra angular do clientelismo no Líbano, que, por sua vez, é a engrenagem que mantém e reproduz a estrutura paternalista. Romper com essa estrutura significa a perda de uma segurança, ainda que precária, e de privilégios. Para que a população deseje e concorde em abandonar o sistema clientelista, é preciso que o governo cumpra o seu papel de provedor.
Assim, para haver uma revolução, de fato, no Líbano, é preciso acabar com a estrutura paternalista; para acabar com o paternalismo, é preciso acabar com o clientelismo; para acabar com o clientelismo, é preciso centralizar no governo todo tipo de serviço social, para que a população tenha acesso direto à infraestrutura e aos serviços básicos. Somente assim, as pessoas apoiarão determinado partido com base na sua capacidade de articulação nesse sentido e não nos privilégios concedidos por relações clientelistas. Para isso, o governo precisa de dinheiro. Mas como conseguir capital para financiar esses serviços? Será que o capital estrangeiro injetado pelos Estados Unidos, Arábia Saudita, Irã, França continuará a sua rota rumo aos cofres libaneses independente da agenda política? E voltamos à estaca zero. Se o fim da estrutura paternalista e do clientelismo depende do poder do estado de cumprir o seu papel, então esses dois caminhos devem ser articulados e tomados conjuntamente.
Contudo, esse esquema não é o único nem o maior empecilho às transformações propostas pelos ativistas e grande parte dos manifestantes. Embora haja uma exaltação da união popular e um apagamento das questões desagregadoras nesse momento, é pouco provável que essa unidade imaginada se mostre real num segundo momento, com a queda do governo e o vácuo de poder. As diferenças de opinião, expectativa e motivações que compõem o tecido social libanês e que estão presentes nas manifestações dos últimos dias já começaram a aparecer. No dia 28, uma manifestação a favor do presidente, cristão maronita, Michel Aoun, embora relativamente pequena, se formou em Jounieh. Alguns de seus apoiadores se pronunciaram contra uma suposta ameaça à moralidade e aos bons costumes, se referindo à orientação sexual dos manifestantes. Mais de uma vez, apoiadores dos partidos Hezbollah e Amal se infiltraram nos protestos e criaram tumultos para intimidar os manifestantes e dispersar o movimento. Mais do que refletir o sectarismo religioso, outra faceta da estrutura paternalista no Líbano, essas contramanifestações demonstram que, ao contrário do que faz crer o romantismo da ideia de revolução na comunhão, as diferenças de visão de mundo e expectativas existem. É preciso enfrentar essa realidade e discutir como lidar com a violência com que essas diferenças podem vir à tona, sobretudo, no caso de uma derrubada total do governo.
Finalmente, no dia 29, o primeiro ministro, Saad Hariri, apresentou a sua renúncia ao presidente Aoun. Esse ato foi celebrado e interpretado pelos manifestantes como uma primeira vitória numa longa batalha, gerando expectativas de que ele seja o primeiro a cair de uma longa lista de políticos. Contudo, Hariri era um elo fraco do compromisso político e não há indícios, pelo menos até agora, de que o presidente e seus aliados estejam dispostos a renunciar e convocar um governo tecnocrático, conforme as demandas dos manifestantes. Por enquanto, é a aliança entre a Frente Patriótica Nacional, de Michel Aoun, e o Hezbollah que, de fato, dominam o governo. De qualquer modo, se o governo não é o único responsável pelo status quo e não está na origem de todos os problemas no Líbano, a discussão é muito mais complexa e as soluções muito mais difíceis de serem construídas do que gostaríamos de supor. Por um lado, a possibilidade de uma revolução de fato resulta do cultivo de um certo romantismo por parte de seus agentes; por outro, a consolidação da revolução depende da criação de diversas condições práticas para que ela aconteça. No entanto, um olhar mais aproximado revela que os capitais social, político e econômico necessários para as transformações propostas ainda precisam ser angariados. Ainda que surjam lideranças políticas capazes de mobilizar uma parte da população, restam dúvidas sobre a permeabilidade dos ideais revolucionários na sociedade como um todo. Agora resta debater e descobrir como transformar o momentum do romance no dia-a-dia de uma relação duradoura.
Sobre os autores:
Leonardo Schiocchet é pesquisador do Austrian Academy of Sciences Institute for Social Anthropology. Ph.D. em antropologia pela Boston University (2010) com pós-doutorado pela UFF (2011-2013) e pela Austrian Academy of Sciences (2014). Especialista na área de Antropologia, com ênfase em palestinos, refugiados e Oriente Médio, atuando principalmente nos seguintes temas: rituais e cotidiano; nacionalismo, etnicidade e religião; conflito, política e religião; líbano e os palestinos; oriente medio e os árabes; refugiados palestinos; refugiados palestinos no Brasil; islã e cristianismo.
Liza Dumovich é doutora em Antropologia pela UFF e pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos do Oriente Médio da UFF, com ênfase em movimentos islâmicos transnacionais, ritual e simbolismo, nacionalismo, etnicidade e religião; migração e refúgio. É coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas do Oriente Médio da UCAM e coeditora da Revista Diáspora.