A feira Chega Junto traz a Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro,
a culinária e expertises de imigrantes e refugiados dos quatro cantos do mundo
Thaís Chaves Ferraz
“É uma maneira de fazer o bem”, dizem os frequentadores da feira Chega Junto quando perguntados sobre o motivo de estarem lá, a cada último sábado do mês, nos jardins da igreja anglicana Christ Church, em Botafogo, tradicional bairro da zona sul carioca.
A ideia da boa vontade nas falas é fundamentada pela percepção de que prestigiar o evento é ajudar a escrever, no Brasil, novas trajetórias para refugiados e imigrantes que exibem seus produtos e habilidades em meio a crianças fantasiadas, idosos, músicos, artistas, curiosos e compradores em geral, misturados a uma profusão de cores, cheiros e sabores de diversas nacionalidades.
As mercadorias de maior destaque são pratos e alimentos “típicos” preparados e servidos na hora, no melhor estilo food street gourmet. Além da possibilidade de se sentirem coparticipantes de um projeto de acolhimento, “o que atrai as pessoas é a chance de experimentar uma gastronomia alternativa àquela cotidiana e ter a oportunidade de passar tempo juntas, num lugar bonito, com árvores e música”, acredita Mohammed El Jazouli, imigrante marroquino e um dos organizadores do evento.
Com um português salpicado de sotaques, empreendedores da Síria, Venezuela, Peru, Marrocos, França, Togo, Nigéria, Colômbia e de tantos outros lugares do mundo negociam seus artigos artesanais nesse minimercado ao ar livre. Aos interessados, costumam dedicar um tempo para falar de suas trajetórias de vida, ainda que o tema evoque, por vezes, memórias delicadas.
“Não é só uma comida de rua, é composição gastronômica com uma história anterior”, diz Anas Abdul Rjab.
Anas Abdul Rjab, expositor na Chega Junto desde as primeiras edições, há quatro anos, diz que é interessante para o público conhecer a história por trás do produto final ali oferecido, e que a feira é o espaço ideal para esse tipo de troca. “Não é só uma comida de rua, é composição gastronômica, e há um contexto anterior”, explica.
Engenheiro na Síria, Abdul Rjab conta que chegou ao Brasil como refugiado e que cozinhar, uma habilidade pessoal elogiada por amigos, se tornou uma forma de ganhar a vida no país. Aos visitantes oferece variações elaboradas da tradicional pasta de grão-de-bico, o homus com beterraba e com pimenta e nozes, e o fatteh, combinação de carne, molho de iogurte, berinjela e tahine, além de outras delícias. O criador do SimSim Culinária Árabe explica que, em paralelo, se estabeleceu fixamente, mas assegura que a itinerância da Chega Junto é igualmente atrativa e tem “energia positiva”.
A Chega Junto é uma parceria com o coletivo Junta Local, cuja proposta é “valorizar o elo humano na cadeia alimentar”, reunindo pequenos agricultores e produtores que forneçam alimentos “bons e frescos”, por um preço razoável. Os conceitos de proximidade, saudabilidade e manufatura pontuam as vendas.
O pontapé inicial para a Chega Junto se deu como um incentivo integrador por parte da Junta Local, absorvendo possíveis contribuições desses estrangeiros que se deslocaram rumo ao Brasil, muitos como solicitantes de refúgio. Fortalecer os vínculos sociais e promover a dinâmica do trabalho tornou-se o foco. Conforme El Jazouli, “a Junta Local, que já organizava uma feira física na qual era possível encontrar e degustar produtos do Rio de Janeiro, convidou os refugiados e imigrantes para fazerem o mesmo, mas de uma forma mundial.”
Marcelo Diniz, que atende às duas edições, afirma comercializar seus cogumelos com satisfação nesses encontros: “É uma iniciativa fantástica, pela troca. Os expositores da Junta receberam muito bem a ideia da Chega Junto. Eu estou aqui na barraca, mas sempre tento circular e provar coisas novas”, garante.
Apoiada também pela Cáritas, entidade católica de ajuda humanitária, a Chega Junto é montada desde 2015. A premissa do colaborativismo se reflete no repasse dos lucros destinado à organização: o percentual de cada feirante é ajustado conforme suas atividades.
Assim, os preços dos itens e pratos podem ser bastante acessíveis. “O valor é justo”, afirma a analista de câmbio Isabella Ascânio, que voltava à Christ Church para comer o kebab feito pelos sírios Ashraf Sadek e Shad Khoury por R$ 25,00. A receita de pão árabe embalando carne de cordeiro, tahine, pasta de alho, salsa, tomate, alface e cebola é tão apreciada que a barraca Chaan ostentava a maior fila da feira.
Com bom humor, Sadek, que começou sua formação como chef na Síria e deu continuidade por aqui, diz que deseja conquistar mais fãs de shawarma e döner kebab. “Quero que os que comeram na Europa procurem este!”. Já Khoury comentou ter trabalhado antes na venda de salgados nas ruas – uma das formas pelas quais a população carioca travou contato inicial com refugiados e imigrantes –, e que a atuação na Chaan é uma experiência relevante.
Solicitantes de refúgio se encontram em situação de alta vulnerabilidade, com necessidades imediatas e memórias delicadas. Promover seu empreendedorismo e o contato interpessoal é uma ação estratégica.
Em um estande que servia wraps de faláfel, ao ser instado a contar um pouco de si, um sírio desabafou: “A história é sempre a mesma para quem sai da Síria. Não saímos por nós, fugimos da guerra pelos nossos filhos. Se você quiser saber da comida, me pergunte. Meu nome e mais, eu não digo”. Durante a feitura do faláfel, porém, aos poucos, o diálogo foi se estabelecendo. Ele mostrou as filhas pequenas que brincavam ao redor da instalação de madeira, explicando que sua vinda era uma providência em favor delas.
Solicitantes de refúgio não são apenas migrantes, mas indivíduos que se encontram em situação de alta vulnerabilidade, chegando às terras brasileiras muitas vezes de forma precária, com necessidades jurídicas, financeiras e sociais imediatas. Um dos maiores desdobramentos da Guerra Civil da Síria é a fuga em massa. Sem expectativa de término, o confronto já contabiliza quase meio milhão de mortos (470 mil, segundo a ONU, em dados de 2018).
Recebendo indivíduos de todas as nacionalidades em sua rede cooperativa de economia, a Chega Junto traz originalidade e oportunidades ao Rio de Janeiro. Promover a circulação monetária e o contato interpessoal é uma estratégia de integração social eficaz, especialmente no aprendizado da língua e consequente ampliação do networking.
“Quem quiser se iniciar como expositor, primeiro passa por uma oficina na feira [processo de curadoria]. Se agradar, permanece. A verdade é que a maioria acaba participando, pois todos têm algo novo para trazer ao público, e os brasileiros ficam muito curiosos”, diz El Jazouli, que atua cotidianamente como professor de francês e, na feira, exibe suas habilidades como calígrafo, escrevendo artisticamente no alfabeto árabe o nome dos frequentadores. “O que é diferente chama atenção, e se vende”, completa.
Há uma infinidade de temperos para os que procuram a Chega Junto. Arepas da Colômbia, ceviche do Peru, culinária africana direto da Nigéria, samosas indianas e mate, doces, pães, pastas, vinhos e cervejas brasileiríssimos. Para os ouvidos também há alimento: sambas, jazz, blues, MPB. Os que buscam o sagrado rezam dentro da Christ Church e revezam o espaço com crianças pequenas que descansam na área mais fresca e privada da construção. Aqueles interessados em moda e estilo não ficam desassistidos, pois há roupas e maquiagens feitas por profissionais de diferentes etnias. Nessa profusão de alternativas, a ideia de dar a volta ao mundo em uma tarde num bairro carioca parece irresistível: “O visitante realiza um intercâmbio dentro do Brasil, ficando mais rico culturalmente, experimentando comida e bebida dos quatro cantos do globo”, ilustra El Jazouli.
Feira Chega Junto
@feirachegajunto
Quando: último sábado de cada mês.
Onde: Christ Church Rio – Rua Real Grandeza, 99. Botafogo, Rio de Janeiro, Brasil.
Para saber mais:
Glossário
Arepas – espécie de empanada com massa feita de milho ou farinha de milho, recheada com carne, frango ou queijo, molhos e temperos.
Ceviche – peixe branco ou polvo marinados em sumo de limão, pimenta e cebola roxa.
Döner kebab – nome turco para o sanduíche kebab.
Faláfel – bolinho feito de massa de grão-de-bico, é frito.
Homus – pasta de grão-de-bico e temperos.
Samosa – pastéis fritos com recheio de vegetais e grãos, como batata, feijão, fava e condimentos. Alternativamente, pode ser feita com carnes.
Shawarma – churrasco, carne assada na brasa.
Tahine – pasta oleosa feita com gergelim.
Sobre a autora:
THAÍS CHAVES FERRAZ é jornalista e pesquisadora da Revista Diáspora. Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFF (2015). Possui graduação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2002) e graduação em Letras Português- Árabe pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007), além de cursar Relações Públicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.