Em novo artigo, Nathalia Quintiliano cruza o estreito que separa a África e a Ásia e nos conduz por uma história de conflitos, alianças e retaliações que envolvem agendas políticas, comércio e segurança internacionais

Por Nathalia Quintiliano

O desdobramento da crise diplomática do Golfo despertou um sensível confronto no Chifre da África, mais precisamente na fronteira da República do Djibuti com o Estado da Eritreia. A região de Doumeira, composta por uma ilha e uma colina no leste do continente, é uma disputa de longa data entre os dois países. Após dez anos sem conflitos diretos, a retirada repentina das tropas cataris da fronteira reascendeu o antigo litígio que parecia adormecido. Desde 2008, o Catar foi o maior mediador para o conflito. Há sete anos, o país vem mantendo 500 soldados em missão de paz, na inabitável colina de Doumeira para monitorar a implementação do cessar-fogo assinado em Doha, em 2010.

Apesar do Catar não ter dado uma explicação oficial para a retirada imediata das tropas até o momento, o alinhamento da Eritreia e do Djibuti à agenda política da Arábia Saudita vem sendo apresentado como a razão mais evidente pela mídia.

No início de junho, o Reino da Arábia Saudita, o Reino do Bahrein e os Emirados Árabes Unidos cortaram as relações diplomáticas e as ligações terrestres, marítimas e aéreas com o Catar, após acusá-lo de financiar o terrorismo (o Catar abertamente financia grupos como a Irmandade Muçulmana no Egito, o Hamas na Faixa de Gaza, além da Al-Sham, braço da Al Qaeda na Síria) e estreitar os laços com o Irã. Desde então, o Conselho de Cooperação do Golfo vem buscando aliados a fim de pressionar o Catar para que este se alinhe à agenda política de seus vizinhos. Alguns analistas afirmam que se esta medida se tratar apenas de uma retaliação, não seria condizente com a recente resiliência do Catar no que diz respeito ao bloqueio: nenhuma retaliação, até o momento, foi aplicada por parte do Catar a nenhum dos países que cortaram laços diplomáticos, ou que de alguma forma se alinharam à Arábia Saudita.

Tropas djibutianas com carros blindados leves, perto da fronteira, 10 de Junho de 2013.

A Disputa

Em janeiro de 1900, um acordo que delimitou as possessões das colônias francesas e italianas na costa do Mar Vermelho estipulou que a fronteira da Somalilândia Francesa (atual Djibuti) com a colônia italiana da Eritreia começava do promontório do Cabo Doumeira e se estendia ate 1.5km da divisão de águas da península. No entanto, não ficava claro no acordo como ou quando aconteceria a divisão da Ilha Doumeira. O Protocolo apenas mencionava a manutenção da desmilitarização da Ilha e também uma soberania compartilhada que seria melhor discutida mais tarde, algo que nunca ocorreu.

 

Em 1935, em um novo acordo franco-italiano, também chamado de Acordo Mussolini-Laval, a França fez uma proposta à Itália fascista em uma tentativa de receber o seu apoio contra a Alemanha de Hitler. Parte desse acordo incluía a cessão de territórios da Somalilândia Francesa (Djibuti) à Eritreia italiana. No entanto, apesar do acordo ter sido aprovado legalmente na França, o mesmo não aconteceu na Itália, cujo Parlamento nunca assinou o acordo.

 

Desde a independência dos dois países, Djibuti em 1977 e Eritreia em 1991, tanto a Ilha Doumeira quanto o Cabo Doumeira vêm sendo motivo de desacordo entre os vizinhos. A Eritreia argumenta que o Acordo de 1935, que foi aceito e oferecido pela França, tornava o Protocolo de 1900 obsoleto. No entanto, o Djibuti contra-argumenta dizendo que uma vez que o mesmo nunca foi aprovado pela Itália, o Acordo se tornou inválido, e que, portanto, não seria legalmente aceito segundo as leis internacionais.

 

Em 2008, o Djibuti acusou a Eritreia de formar trincheiras e acumular tropas do lado djibutiano da fronteira. O governo do Djibuti respondeu à ofensiva e durante os dias 10 e 13 de Junho de 2008 houve a escalada do conflito. Após um pedido oficial do Djibuti às Nações Unidas, um grupo de observadores enviado à região pelo Conselho de Segurança tentou monitorar o andamento da disputa dos dois lados da fronteira, mas este nunca conseguiu o visto de entrada para a Eritreia. Ao ser questionada por que havia recusado a entrada dos monitores, esta alegou que os interesses das grandes potências do Conselho de Segurança influenciariam o veredicto final. Durante o conflito de 2008, o Djibuti recebeu apoio logístico da França, apesar do país não ter se envolvido diretamente. Foi então que o Catar se ofereceu como mediador do conflito e, após a negociação bem-sucedida do cessar-fogo, enviou inicialmente 200 soldados para monitorar a implementação e manutenção da paz na região.

 

Uma pequena ilha no Mar Vermelho e uma colina praticamente inabitável não pareciam relevantes aos interesses das grandes potências durante o inicio do século XX. No entanto

a localização se tornou de alta importância estratégica: o Mar Vermelho é hoje uma das mais importantes rotas para o comércio internacional de petróleo entre o Golfo Pérsico, a Europa e também os Estados Unidos.

Pelo Estreito de Mandeb (Bab al-Mandab), que conecta o Golfo de Áden ao Mar Vermelho, 3.8 milhões de barris de petróleo passam diariamente. Sua localização geográfica é uma preocupação também para a segurança internacional, sendo um dos locais mais vulneráveis à pirataria. O tráfico de armas, drogas e munições, além de ataques terroristas, fizeram do Chifre da África um local de extrema importância militar. A maior base americana na África fica no Djibuti; a maior base militar francesa também se encontra no Djibuti, e tanto a China quanto o Japão escolheram o Djibuti para abrigar suas primeiras bases militares internacionais. Itália, Alemanha, Espanha, Emirados Árabes, Turquia e Arábia Saudita também estão presentes, e apesar de não haver uma base militar da Rússia, esta mantém uma Embaixada no pais. Já a Eritreia abriga uma base militar dos Emirados Árabes Unidos e estreitou suas relações com a Arábia Saudita ao decidir apoiar a coalizão no Iêmen em 2016. Apesar disso, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu manter o embargo de armas imposto à Eritreia desde 2009, após acusações de que o país infringiu o embargo criando milícias contra o Djibuti e contra a Etiópia, dois vizinhos com quem mantém relações complicadas.

 

Até o momento, os países do Chifre da África parecem ter alinhado suas políticas à agenda saudita, com exceção da Somália, cujos laços com o Catar são fortes e, portanto, seria mais surpreendente se apoiassem o bloqueio ao Catar. Este, por sua vez, vem cada vez mais mostrando uma política não-retaliativa em relação a esses países: nenhum cidadão do Golfo foi obrigado a deixar o Catar, nenhum cidadão do Egito, que tem uma população de 200 mil residentes no Catar, foi informado de que deveria deixar o país e, apesar da hostilidade contra empresas cataris nos EAU e na Arábia Saudita, não houve retaliação por parte do país.

 

Justamente por isso, alguns analistas afirmam que a manutenção de 500 soldados em uma região inóspita e agora ainda mais hostil deixava os soldados cataris um alvo fácil para os inimigos do país. Outros afirmam que foi o próprio comportamento da Eritreia, que parece não haver cooperado o suficiente nestes últimos 7 anos, que fez o Catar desistir de assumir o custo e o risco de se manter na região.

Seja como for, a saída abrupta do Catar e da missão de manutenção de paz, bem como o avanço da Eritreia na fronteira com o Djibuti, acabaram reacendendo as tensões:

A União Africana pediu calma ao lidar com o assunto, e no dia 18 de Junho uma reunião de emergência para tratar do assunto no Conselho de Segurança das Nações Unidas recebeu com bons olhos uma proposta da União Africana de mandar novos observadores para a região.

Sobre a autora:

Nathalia Quintiliano é Oficial das Nações Unidas para o Iêmen desde o Djibuti. Nathalia atua também como parte da Força-tarefa para a Prevenção de Abuso e Assédio Sexual do pais.
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