A antropóloga e especialista em islã Francirosy Campos Barbosa desvela as nuances da relação entre islã, véu e feminismo

Francirosy Campos Barbosa

O mundo parece não ter sido feito para mulheres em espaço público, pois a  quantidade de violências às quais são submetidas cotidianamente nos geram espanto, indignação e muita luta pela frente. O fato de ser mulher parece creditar ao agressor/assediador autoridade para ameaçá-la, impedi-la de andar com segurança, enfim, ser ela mesma. Dar garantias às mulheres e defender seus direitos é pauta dos movimentos feministas desde os seus primórdios, mas também se apresenta no islã desde o século VII, como os direitos de escolher seu marido (Khadija, primeira esposa do Profeta Muhammad, o pediu em casamento, sua filha Fátima negou vários pretendentes e escolheu Ali), de divórcio e ao aborto (em determinadas situações, como risco de vida à mãe ou em casos de estupro).

Nem o movimento feminista nem o islã são homogêneos.

O primeiro não levanta as mesmas bandeiras em todos os lugares e, muitas vezes, pode ser apenas mais um feminismo branco, heterossexual e completamente anti-religião, com  a ideia fixa de “salvar” mulheres muçulmanas, conforme podemos ver nas atuações do FEMEN. Por outro lado, é preciso considerar que a base do islã é a tawhid (unicidade de Deus) e que a religião apresenta cinco jurisprudências (no entanto são mais de 80 escolas) que divergem ou se aproximam em determinados temas, reforçadas por contextos diversos que podem expressar diferentes interpretações e usos do texto sagrado. Como nos lembra Tariq Ramadan, a categoria de metodologias nos fundamentos do direito e da jurisprudência (usul al-fiqh) nos ensina princípios universais e as formas de implementação vão depender muito do contexto.

Mesmo com esta diversidade de metodologias, estão garantidos na shari’a os direitos femininos. No entanto, o que vemos em países islâmicos e fora deles é um desconhecimento desses direitos e inversões no tratamento do sexo feminino. Há sim crimes de honra, há sim um impedimento do acesso de mulheres ao conhecimento, há sim violências contra mulheres, e é para isso que os movimentos feministas olham; entretanto, se esquecem que as mobilizações devem partir de dentro do próprio grupo ou dialogado com o mesmo. A ideia de que mulheres muçulmanas silenciam suas violências é tão opressora quanto a opressão que elas mesmas sofrem. As pautas e agendas dos movimentos de mulheres no Egito, Paquistão, Irã etc. são diversas e devem ser consideradas dentro do seu próprio grupo. A tal ideia de liberdade à qual estamos acostumadas não é a mesma que se configura em comunidades islâmicas. Tenho expressado frequentemente que é preciso considerar as agendas dos movimentos feministas/femininos do universo islâmico. Mulheres egípcias ou iranianas não necessariamente reivindicam as mesmas coisas que muçulmanas brasileiras.  

Se os diversos contextos nos apresentam diferentes reivindicações, também nos apresentam outros modelos de véus islâmicos e os variados sentidos atribuídos ao seu uso. Como podemos verificar na imagem que abre este artigo, burqa, niqab, hijab e xador são encontrados em contextos diferentes, e precisamos banir de vez a ideia corriqueira de que o uso da vestimenta islâmica seja uma forma limitante de liberdade, quando não é. Essas mulheres optam pelo seu uso, principalmente, ao estarem em conformidade com a religião islâmica, pois isto significa cumprir uma determinação corânica:

“Ó Profeta! Diz a tuas filhas e às mulheres dos crentes que (quando saírem) se cubram com suas jalabib, isto é mais conveniente para que se distingam das demais mulheres e não sejam molestadas, porque Deus é Indulgente e Misericordioso”. (Alcorão: 33, 59).

Precisamos considerar que o “outro” produz sentido sobre o seu próprio cotidiano. Os significados atribuídos à vestimenta islâmica podem, sim, ser políticos, como descrevi num artigo em 2013, intitulado “Diálogos sobre o uso do véu”, mas podem também se relacionar à religiosidade e à fé da mulher muçulmana. A noção de pessoa da mulher muçulmana passa pelo uso do véu, pois este sinal diacrítico não só dá visibilidade à sua religião, como também lembra a mulher do seu imam (fé) e, embora isto não revele nenhuma perfeição em seu comportamento, lhe recorda cotidianamente que ela carrega no corpo a sua própria devoção a Deus.

Por fim, devemos considerar que o uso do véu islâmico é uma prescrição corânica sujeita às diversas interpretações, mas a maioria dos muçulmanos vão dizer que o momento em que a mulher escolhe usar deve partir dela e não de outros (pai, marido, irmão, mãe, etc), isto implica dizer que nenhum membro da família pode lhe impor o uso do véu. Se internamente à comunidade há várias interpretações e formas de uso da vestimenta religiosa, externamente temos o discurso feminista que considera que as mulheres, ao retirarem os lenços, estariam se empoderando. Empoderar-se significa, sobretudo, que o sujeito faz suas próprias escolhas e ocupa os seus lugares de fala.  Tanto feministas como acadêmicos e acadêmicas-feministas ainda têm dificuldade de entender as singularidades de um campo islâmico e do lugar que ocupam as mulheres muçulmanas, e quase sempre lhes tiram o lugar de fala, sem perceber que elas já ocupam os seus próprios espaços – que certamente não é o mesmo dos movimentos feministas, pelo menos não na sua totalidade, conforme venho observando. Como diria Ramadan no texto citado inicialmente, trata-se de um movimento de um “feminino islâmico”, e precisamos considerar isto como desejo dos sujeitos de direito: as mulheres.

 

Para saber mais:

 

BARBOSA, Francirosy Campos. Diálogos sobre o uso do véu (hijab): empoderamento, identidade e religiosidade. Perspectivas, São Paulo, v. 43, p. 183-198, jan./jun. 2013.

MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

SOBRE A AUTORA:

 

Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, pós-doutora pela Universidade de Oxford sob supervisão do Prof. Tariq Ramadan, docente do Departamento de Psicologia, FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, e organizadora do livro “Olhares femininos sobre o Islã: imagens, etnografias e metodologias”, Hucitec, 2010.

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