As disputas sobre liberdade individual e religiosa no Marrocos, durante o mês do Ramadan, pelo olhar do antropólogo Bruno Bartel
BRUNO BARTEL
Rabat, final de julho de 2012. No calendário islâmico, era o início do nono mês, o mês do Ramadan. Durante esse período, os muçulmanos devem praticar o jejum (sawm) de alimentos, bebidas e relações sexuais, desde os primeiros minutos de luz solar até o pôr do sol. O jejum marca o caráter sagrado do Ramadan, pois foi nesse mês que se iniciou a revelação ao Profeta Muhammad.
Em Rabat, o período sagrado de jejum e orações para os muçulmanos alterava radicalmente a paisagem urbana da capital marroquina. Caso alguém, por exemplo, necessitasse utilizar os serviços públicos ou bancários teria que se adequar aos novos horários impostos pelo calendário religioso. Isso significava, na prática, que o horário do expediente estaria reduzido. Contudo, eram as portas fechadas do comércio, tanto do centro histórico, a medina, quanto dos restaurantes da cidade, que me chamavam a atenção no espaço público. Mesmo assim, eu nunca imaginaria que as restrições alimentares impostas pelo período sagrado poderiam motivar situações conflitivas.
Certa vez, por volta das 17h, quando os raios de sol ainda incidiam sobre a cidade, eu aguardava o tramway numa plataforma da Gare de Rabat Ville, a estação de trem central, para me encontrar com alguns amigos, reunidos a cinco quadras dali. Uma cena um tanto quanto “curiosa” despertou a minha atenção. Havia um pedinte sentado em um dos bancos da plataforma, isolado das demais pessoas. Ele já havia caminhado, momentos antes, ao longo de toda a estação para pedir dinheiro aos transeuntes e turistas, porém, sem muito sucesso. Após ficar alguns instantes falando sozinho, ele disfarçou a abertura de uma embalagem de iogurte diante das pessoas que se encontravam mais próximas dele. Ainda assim, o pedinte não pode esconder por muito tempo o consumo do produto. Tal atitude, subitamente, provocou a ira de um rapaz que se encontrava na pista oposta do tramway. Visivelmente abalado com o ato praticado, o rapaz atravessou a pista e pôs-se a caminhar em direção ao pedinte. Algumas explicações foram requisitadas como forma de repreendê-lo pelo ato em plena luz do dia no Ramadan. A interação entre os dois ganhou contornos conflitivos. Repentinamente o rapaz tentou retirar a embalagem do iogurte das mãos do mendicante. Numa segunda tentativa fracassada, o pedinte deu as costas ao rapaz e pôs-se a comer. Tal atitude induziu o rapaz a desferir socos e tapas nas costas do pedinte. Diante desta circunstância, algumas pessoas da plataforma tentaram acalmar os ânimos e afastar os dois homens. Porém, muito rapidamente, dois grupos se formavam na estação: os simpatizantes do rapaz, que reconheciam a atitude provocativa do pedinte em comer publicamente e, do outro lado, os defensores do pedinte diante das cenas de abuso e intransigência do rapaz.
Até aquele momento, eu entendia e vivenciava os discursos públicos de que o Ramadan é um período de jejum criado pela religião islâmica aos indivíduos e possui regras de conduta bem estabelecidas. A prática dos muçulmanos de abster-se de comidas e bebidas é vivida contextualmente em cada sociedade e decorre a partir de performances individuais, até que se tenha o anúncio de sua quebra (iftar), estabelecido por horários predeterminados. Diferente do que se observa fora desse período, a chamada coletiva transmitida pelos alto-falantes das mesquitas (adhan) reforça o momento da quebra do jejum, ao mesmo tempo em que comunica a preparação de todos para a oração do pôr do sol (salat al-maghreb). Seja como for, cenas como a que eu presenciei na estação explicitam um tema recente e controverso na sociedade marroquina: o da liberdade individual para os não praticantes da religião islâmica.
O artigo 222º do Código Penal marroquino criminaliza os indivíduos que forçam a quebra do jejum no espaço público, fora dos horários permitidos. Durante o Ramadan, os não praticantes devem manter o jejum ou se esconder, sob a pena de serem presos pela polícia e/ou levados sob a custódia da justiça. Cito quatro casos retratados pela revista marroquina Zamane para ilustrar essa controvérsia. Em 2016, durante os primeiros dias do Ramadan, três pessoas foram interrogadas, em Rabat, por terem feito uma refeição em público. Em Zagora (cidade ao extremo sul do país), dois homens foram condenados à prisão por terem bebido água. Entretanto, em seguida, tiveram as sentenças suspensas justificadas pela onda de calor de 40 graus que havia se abatido na região.
E, quando não são as autoridades públicas que usam o seu poder repressivo, é a própria sociedade marroquina que se encarrega da “fiscalização”. Um desses episódios aconteceu em 2015, também em Rabat. Um funcionário saiu discretamente para fumar um cigarro na rua e foi denunciado por um dos colegas de trabalho. O rapaz recebeu voz de prisão pela polícia e foi encaminhado para a delegacia para prestar esclarecimentos. Uma situação mais grave ocorreu a outro jovem que tentou acender um cigarro em uma sala de bilhar, na cidade de Marrakesh, e teve parte do rosto seriamente atingido após ser espancado.
O cenário impressiona alguns marroquinos com idade superior aos 40 anos, visto que muitos deles afirmam ter vivido em uma atmosfera religiosa mais tolerante, tomando como referência os casos descritos anteriormente. Entretanto, um movimento recente tem ganhado força no país. O objetivo do grupo MALI (Mouvement Alternatif pour les Libertés Individuelles), por exemplo, é justamente suscitar um debate nacional sobre a importância da consciência individual na promoção de espaços de liberdade para os não praticantes da religião islâmica.
Nascido do encontro de internautas nas redes sociais em 2009, o MALI propôs organizar uma série de encontros voltados para a quebra pública do jejum durante o Ramadan. O primeiro evento contou com a participação de 6 jovens da cidade de Mohammedia, a 63 km da capital do país. Quando eles anunciaram que pretendiam quebrar o jejum do Ramadan em público – no caso, em uma floresta – a polícia imediatamente empenhou-se em impedir a ação dos jovens. O apoio da população foi fundamental para justificar a repressão contra um dos pilares das formas de religiosidade dos marroquinos. Na época, várias personalidades associadas a movimentos ligados ao islã político denunciaram na imprensa o que consideravam um ataque às tradições religiosas e culturais do país.
Os planos do MALI para a edição do piquenique de 2017, na cidade de Mohammedia, não se concretizaram. Mais uma vez, as autoridades marroquinas se dispuseram a monitorar as ações do grupo no espaço público. Contudo, desta vez, as informações das ações do MALI circularam amplamente, tanto no campo “progressista” quanto na principal emissora televisiva do país (2M). Isso revela as pressões políticas existentes e expõe o grau de conservadorismo sobre o tema. Por exemplo, associações civis, como a AMDH (Association Marocaine des Droits Humains) e a Anistia Internacional, que defendem as liberdades individuais, reagiram a favor dos não praticantes. Já os partidos políticos, nomeadamente, o PAM (Parti Authenticité et Modernité), o MP (Mouvement Populaire), o RNI (Rassemblement National des Indépendants) e o USFP (Union Socialiste des Forces Populaires) apressaram-se a condenar os jovens, assim como a maioria da imprensa marroquina. O PJD (Parti de la Justice et du Développement) não quis se pronunciar sobre o caso.
Movimentos como o MALI demonstram que, ainda hoje, quebrar o jejum fora do horário estipulado e publicamente, durante o Ramadan, é uma afronta ao tipo de Islã praticado no Marrocos e passível de punição. Se parte da sociedade civil pede a revogação do artigo 222º do Código Penal é porque reconhece que a noção de liberdade religiosa se encontra confinada ao espaço privado. Isso acaba reduzindo a questão da tolerância religiosa no país à capacidade de convivência entre praticantes e “não praticantes” da religião islâmica. O MALI não visava incitar os marroquinos a quebrarem o jejum em público nem tampouco procurava abalar a crença de seus praticantes no país. O posicionamento do grupo apenas permite iniciar o debate para que os não praticantes do Islã possam comer nos restaurantes marroquinos abertos durante o dia, sem correr o risco de sofrerem represálias legais e/ou sociais.
1 – KOZLOWKI, Nina. Le tabou et la loi. Zamane, Rabat, n. 78, maio, 2017, p. 42-45. 2- Perfil dos interlocutores dos quais pude interagir durante os meus trabalhos de campo nos anos de 2012, 2015 e 2016 no país. 3- O termo islamismo deve ser entendido como uma corrente religiosa que quer fazer do Islã e do uso da Lei Islâmica (sharia) um modelo político alternativo à noção de democracia proveniente do “Ocidente”. Apesar de existirem diferentes visões concorrentes no campo político-religioso, o que se define como islamismo não constitui um movimento uniforme, pois os significados e as ações associados com cada uma de suas manifestações públicas têm variado de acordo com o contexto cultural. 4- Fundado em 2008, o PAM se define como progressista ou socialdemocrata. Composto por muitos políticos próximos ao rei (Mohammed VI). O objetivo do MAP é ser uma alternativa à ascensão do PJD. 5- Fundado em 1957, o MP possui as origens ligadas as causas berberes e se define como um partido liberal. 6- Fundado em 1978, o RNI se define como um partido liberal. 7- Fundado em 1959, o USFP se define como um partido progressista, mas de ideologia socialista. 8- Fundado em 1998, o PJD é o partido que lidera o poder executivo no Marrocos desde 2011. O PJD defende como valores o islamismo e a democracia islâmica.