Monique Sochaczewski
Há cerca de cinco anos, venho incluindo em cursos que ministro uma visita guiada pelo Centro do Rio de Janeiro, focada na presença árabe que ali existe. Tenho licença de guia de turismo, mas poucas vezes a usei para de fato guiar turistas. De uma maneira geral, a utilizo para guiar alunos de diversas instituições com as quais venho trabalhando. Gosto tanto da coisa e tenho tido um feedback tão positivo, que queria compartilhar aqui. Vai que já existe algo do gênero? Ou vai que alguém se anima a criar um roteiro parecido para cidades como São Paulo, Curitiba ou Foz do Iguaçu?
Bem, primeiro é importante dizer que a inspiração veio de um roteiro do Institute du Monde Arabe (IMA), de Paris. Lá eles chamam de visita-conferência, e o tour começa no próprio prédio do IMA; passa pelo Collège de France e Sorbonne (evocando os primeiros estudos de árabe e sobre o Oriente em geral); dá um pulinho na Igreja Saint-Julien-le-Pauvre (das mais antigas e de culto cristão oriental); ressalta o papel de editoras e jornais em língua árabe na França ainda existentes pelo caminho, e chega enfim à Mesquita de Paris. Na capital francesa, a visita dura duas horas, é cobrada, e só é oferecida de maio a outubro. Não tive a oportunidade de fazer a visita com guia deles porque estive em Paris em um março, mas peguei o roteiro no site e fiz por conta própria, e me encantei. Inseri, por conta própria, a ala islâmica do Louvre também.
Já no Rio, também achei importante criar um roteiro que não passasse de duas horas, mas a lógica é um pouco diferente. Começamos na escadaria do Teatro Municipal, na Cinelândia. Prédio inspirado no L’Opera de Paris e construído numa época que muitos chamam de “Belle Époque Tropical”, serve de pontapé para dizer que não só ele, mas todo o entorno da Cinelândia tem clara inspiração européia, mas tem também parte de seus acervos ligada ao Oriente Médio, sobretudo no caso da Biblioteca Nacional. Essa é a hora, aliás, que tenho que me segurar para não ficar falando horas da (incrível, maravilhosa) coleção orientalista de D. Pedro II na BN. Lembro ainda ao grupo que, por volta da mesma época em que se construíam aqueles edifícios todos, inspirados especialmente na França, a cerca de dez minutos de distância, um pedaço do Oriente se transportava para cá.
Seguimos então andando, até a frente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, onde não só ressaltamos que ali agora se abrigam diversos acadêmicos que pesquisam e ensinam sobre o Oriente Médio, como ali nos aproximamos da SAARA (Sociedade dos Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega), uma espécie de souq tropical. Já começo então a contar da história dos imigrantes otomanos (sim, também tenho que me segurar para não ficar muito tempo falando desse que foi dos mais longevos, vastos e incríveis impérios da história e de que tão pouco se conhece por essas bandas e que não, não é chamado na literatura especializada de turco-otomano) que aqui chegaram, em especial a partir do final do XIX, e que primeiramente se instalaram em sobrados da Rua da Alfândega, mas que com o tempo se espalharam pela região como um todo. Conto um pouquinho também como em 1962 aqueles imigrantes e seus descendentes resolveram se organizar para encarar a concorrência que crescia na cidade de outros centros comerciais que ganhavam força como Copacabana e Madureira, e oferecer certas comodidades a seus clientes, como estacionamento, segurança e até mesmo a divertidíssima Rádio Saara.
A estátua do Mascate, na esquina da Regente Feijó com a Buenos Aires, é a próxima parada e ocasião para falar de como construíam literalmente armarinhos (mostro imagens!) que colocavam nas costas e saíam pela cidade vendendo tecidos e miudezas. Ali tem ainda um busto recém-colocado de um dos fundadores do pólo comercial e uma das várias Casas Pedro. Seguimos então ziguezagueando pelas ruas Regente Feijó, Alfândega e Senhor dos Passos. Paramos em algumas das poucas lojas ainda remanescentes da época em que a Saara era majoritariamente de imigrantes da região que hoje chamamos de Oriente Médio (cristãos, muçulmanos e judeus árabes, mas também significativos armênios e gregos), como a Charutaria Syria e a Padaria Bassil. Aponto para toldo em árabe, mostro esfiha de bacalhau (acho que só perde para a oferenda de sushi que ouvi dizer que existe na Liberdade, em SP), e, quando dá, visito um amigo de infância também judeu que assumiu os negócios da família em uma loja de jóias. E o final, de uma maneira geral, tem sido comilança coletiva e muito bate-papo no restaurante Sírio e Libanês. Seu Joel, o dono, que é imigrante, sempre nos recebe bem e conta um pouquinho, quase que numa “história oral ao vivo”, de sua experiência no Líbano natal e na SAARA.
A minha segunda coluna aqui na Revista Diáspora foi para ressaltar o silêncio que existia no Museu do Imigrante, em São Paulo, em relação aos árabes. Eu me perguntava então se não era o caso de ser criado um museu para eles. Mas aí, pensando bem, e levando em conta essa minha experiência, pensei: para que um museu se se tem a memória viva, entranhada não só na cidade do Rio de Janeiro como tratei aqui, mas também na região da 25 de março em Sampa? É bem verdade que hoje a Saara é bem mais plural, com larga presença chinesa, espanhola, portuguesa e nordestina, e, como disse, temos que procurar o que resta do início da presença árabe, mas não seria o caso de transformar um sobrado da região num espaço de memória? Algo do tipo do Tenement Museum, em Nova York? Esse pequeno museu em Manhattan conta a história de imigrantes que foram morar nos cortiços da região do Lower East Side, em um cortiço original. Essa ideia, na realidade, eu já tinha ouvido da pessoa que mais entende da Saara, a pesquisadora Paula Ribeiro, e acho fenomenal. Ou ainda: será que a incrível Biblioteca Parque, que dá fundos para a Rua da Alfândega e ali tem uma saída, não poderia ter um espaço seu dedicado a essa memória?
Enfim, muitas ideias de como ressaltar, ainda mais, que o Rio – e o Brasil – é também médio-oriental.
SOBRE A AUTORA:
Monique Sochaczewski é doutora em História, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e colunista da REVISTA DIASPORA.