Coautoria de Shahrzad Ghadjar, Rustin Zarkar.
Esse texto foi publicado originalmente em inglês pelo coletivo de mídia Ajam
Às vésperas da Revolução Iraniana de 1979, a esfera pública iraniana passou a ser o local onde as informações eram trocadas verbal, textual e visualmente. Os muros ganharam vida com as opiniões e os clamores das massas. Depois que as forças revolucionárias do Aiatolá Khomeini triunfaram e se institucionalizaram, esses mesmos muros se transformaram em um espaço para disseminação dos novos valores revolucionários. Essa cooptação, no entanto, silenciou outros pontos de vista, impedindo-os de encontrar espaço nos muros. Apesar disso, desde o final dos anos 1980, a cultura da arte de rua iraniana emergiu novamente e se recusa a ser silenciada.
Hoje, os muros de Teerã são uma arena de concorrência entre as mensagens do governo, dos grafiteiros, dos ativistas políticos do movimento verde e de grupos Basiji pró- governo. Nos anos 1970, uma grande parte da população iraniana era analfabeta. A literatura impressa tinha pouca utilidade para a massa pobre urbana, aumentando, assim, a importância das fontes visuais e auditivas revolucionárias. Os ideólogos logo perceberam o poder da linguagem pictórica e passaram a dramatizar o sentimento anti-Pahlavi. Desde então, iranianos de todos os grupos sociais têm sido bombardeados com slogans, temas e lemas revolucionários representados em imagens. A praça pública e as ruas têm servido como telas vivas para artistas – sejam sancionados pelo Estado ou independentes – expressarem emoções e ideias através da arte da persuasão.
Desde os anos 1960, a arte visual de rua nos Estados Unidos e na Europa tem sido tradicionalmente associada aos jovens, à contracultura e à boêmia. No entanto, no caso iraniano, a revolução e os eventos subsequentes levaram à dominação e à cooptação da esfera pública pelo estado, que a utilizou para exibir a grande narrativa ideológica da República Islâmica. Embora a cidade não tenha ficado inteiramente desprovida de arte visual produzida de forma independente, as formas mais visíveis de representação gráfica foram articuladas pelo poder dominante para instilar na população uma convicção mobilizadora. As expressões mais aparentes dessa tática foram produzidas durante a Guerra Irã-Iraque, quando prédios e muros foram cobertos com os rostos da juventude iraniana que perdeu a vida nesse banho de sangue que durou 8 anos.
Quando o Irã entrou na Era da Reconstrução, depois do cessar-fogo de 1988, os murais dos mortos não eram mais necessários para levantar a moral em tempos de guerra, mas serviam como lembranças do sacrifício.
Nos anos 2000, no entanto, muitos iranianos já haviam deixado para trás os anos escuros da guerra e viam a arte produzida durante a Guerra Irã-Iraque como necrófila. Assim, um projeto de embelezamento foi concebido para converter muitos desses murais do tempo da guerra em algo mais suave, ainda que dentro da mentalidade ideológica da República Islâmica do Irã. Esse processo foi abordado no documentário italiano “Fábrica de Mártires” (“Factory of Martyrs”), de 2008, cujo trailer está a seguir:
Factory of Martyrs – Trailer de Fabrica link: https://vimeo.com/3002183
Agora, no lugar dos gigantescos murais de mártires, as ruas iranianas estão recebendo poesia clássica, mosaicos, paisagens e uma gama de imagens com raízes nas artes tradicionais iranianas e no desenho urbano experimental. A Press TV os chama de “desenhos urbanos”, os quais permitem aos transeuntes nas grandes cidades escaparem do ambiente urbano banal.
Factory of Martyrs – Trailer from Fabrica
Embora a arte de rua iraniana tenha sido esmagadoramente dominada por artistas sancionados pelo Estado com a intenção de doutrinar as massas, a última década tem sido palco da ascensão de artistas de rua independentes, sem conexões com o estado. Artistas como Icy e Sot, GhalamDAR e A1one conectam a cultura visual iraniana tradicional aos temas da arte de rua internacional, popularizados por Banksy, Shepard Fairey e outros.
Além disso, esses artistas emergentes não só trazem uma máscara estética para os edifícios de concreto do Irã urbano, mas também dialogam com o poder e usam meios gráficos para abordar questões concernentes à sociedade iraniana. Em vez de ser somente uma linguagem política, a arte de rua está entrando para o vernáculo cultural do Irã por meio de mobilização e não de propaganda.
A imagem acima é uma peça criada por A1one em Teerã. A palavra pintada em spray é haqiqat, ou “verdade”. A1one usa uma técnica que os iranianos chamam de “siah-mashq”, elemento essencial da caligrafia tradicional.
Originalmente, “siah-mashq” é o estudo da escrita de um mestre pela observação das características estéticas e espirituais de um determinado estilo. O professor ou mestre escreve o sar-mashq (modelo), o aluno o copia e então o mostra ao professor para que ele o corrija e oriente. Ao imitar o modelo, o estudante fica saturado por um determinado estilo de caligrafia, que pode ser rastreado até as gerações anteriores. Normalmente, uma única palavra ou frase é o objeto dessa prática caligráfica; os estudantes escrevem uma palavra muitas e muitas vezes para atingir a perfeição. No entanto, não demorou muito para que o siah mashq se tornasse uma forma de arte em si e acabasse se transformando em sinônimo de paciência, diligência, bem como de espiritualidade esotérica.
Outro exemplo do trabalho de A1one usa papel e lambes para celebrar o falecido Haj Qurban Soleimani, um dos últimos grandes poetas iranianos. A sutileza da obra é essencial para o seu encanto. Encurvado e acanhado, o músico tem, ao longo da história, desempenhado um papel fundamental na sociedade iraniana.
Embora fossem mais abundantes algumas décadas atrás, ainda é possível encontrar senhores idosos usando instrumentos como tar, tonbak e daf nas ruas movimentadas de Teerã. Como a vida no Irã se torna cada vez mais urbanizada, tecnologizada e agitada, essa obra pode ser interpretada como um olhar nostálgico sobre as artes tradicionais iranianas, mas também como um comentário sobre a maneira com que as formas tradicionais de música foram marginalizadas pela sociedade.
Além disso, em termos de localização, o músico é tão transitório quanto o artista de rua. O fato de não permanecerem no mesmo local e a existência marginalizada unem esses dois tipos tão diferentes de artistas.
A inocência da infância é um tema popular no grafite iraniano. Esta imagem de A1one personifica com força a imaginação da criança. O spray de A1one faz um desenho realista de um menino sentado sobre uma caixa com um pincel na mão. Ele sorri feliz para a flor que desenhou na parede. O menino está emocionado com sua habilidade de mudar o ambiente em torno de si, pelo simples ato de pintar uma flor em um muro velho, sujo, sem manutenção. Sentado, ele olha fixamente; alegremente entretido com sua própria imaginação. A inocência inerente à criança representa as ações de A1one como embelezador de seu ambiente; a arte de rua é um formato que inspira o artista a fazer com que o entorno das pessoas faça parte delas mesmas.
Aqui, a reivindicação dos muros da cidade, retirando-os da regulamentação onipresente do estado, fica mascarada pelo desejo aparentemente infantil de imaginar (e pintar) um mundo mais bonito.
Embora os grafiteiros do Irã trabalhem para criar suas próprias vozes, ainda há um grande respeito por aqueles que popularizaram e influenciaram o movimento atual. Esta obra é de Icy e Sot, dois irmãos de Tabriz. O estilo tem muito a ver com o de Banksy, uma das inspirações de Icy e Sot. O lambe e a tipografia são ocidentalizados, uma crítica política e cultural à posição da República Islâmica do Irã em relação ao álcool. “Beer is not a crime” é uma referência direta à lei criada após a revolução islâmica, proibindo o consumo, a posse e a venda de álcool no país. Declarados consumidores de álcool, Icy e Sot criaram essa imagem como uma forma de rebeldia contra as leis islâmicas que regem o país, dando ao público uma visão pessoal de seus próprios hábitos.
Como em qualquer centro urbano, projetos de construção são uma constante nas ruas de Teerã, e não é raro esbarrarmos em uma casa construída pela metade ou meio demolida. Essa obra de Icy e Sot é um close de um velho fantasmagórico olhando fixamente para a rua, aparentemente assistindo o desfile de pessoas e carros. O nome da obra é, muito adequadamente, “O Velho”, não apenas por causa do tema do desenho, mas também pela estrutura deteriorada sobre a qual a obra repousa. Pintada sobre um prédio velho com o interior todo demolido e apenas algumas paredes em pé, o retrato devolve um pouco de vida à estrutura. Já não é mais outro projeto inconcluso, mas o suporte de uma obra de arte bela e complexa.
De modo muito semelhante à obra de A1one mencionada anteriormente, essa figura feita por Icy e Sot é um comentário sobre a inocência das crianças. Enquanto a obra de A1one alude à imaginação e à vivacidade inerente a todas as crianças, esta obra representa uma criança trabalhando.
Uma criança com semblante sério caminha sobre escombros, carregando grandes peças de Lego. No Irã, como em muitos outros países, não é incomum ver crianças de famílias de baixa renda realizando pequenos trabalhos nas ruas, lavando carros e vendendo miudezas – em alguns casos, podem ser vistos até mesmo em obras de construção civil. Esta figura representa a perda da inocência por muitas crianças das classes urbanas mais baixas, forçadas, com freqüência, a trabalhar para completar a magra renda familiar.
Icy e Sot da Shahrzad Gallery
ghalamDAR
Representações pictóricas de crianças desfavorecidas também foram utilizadas nesta obra de ghalamDAR, um grafiteiro baseado em Teerã. Aqui, ghalamDAR usa um estêncil e spray de tinta preta para representar uma criança despossuída, enrolada em um cobertor. Moradores de rua são uma visão comum nas ruas das metrópoles. O texto da mensagem, “totalmente desabrigado”, foi escrito à mão e esclarece a figura. Abertamente, aborda a negligência como um problema sócio-econômico urgente que infestou Teerã. Além disso, o trabalho está intencionalmente incompleto, pois a pintura está falhada. Isso faz com que a criança delineada pareça completamente abandonada e sem valor, como suas contrapartes reais – refletindo o modo como os pedestres normalmente veem os pedintes, ornamentos descartáveis.
Esta figura floreada de GhalamDAR foi concluída com caligrafia feita à mão livre e uma mistura colorida de tinta spray. Este trabalho, que quer dizer “diferente” (متفاوت) na escrita persa, transforma letras – símbolos que transmitem um significado audível – numa arte visual. A obra é composta unicamente por palavras sobrepostas, remetendo às formas tradicionais de arte iraniana, por meio de estilizações personalizadas da caligrafia. Aqui, técnicas clássicas concebidas para cálamo e tinta foram reinterpretadas em um meio diferente. GhalamDAR, como A1one e Icy & Sot, é capaz de pegar formas artísticas tradicionais e aplicá-las à era contemporânea, inovando e revigorando a cena artística iraniana.
Hoje, como o espaço público iraniano continua a ser utilizado como uma plataforma de comunicação visual, as pessoas estão usando essa esfera de comunicação para dialogar diretamente com a população do país. Ao produzir arte fora da regulamentação e sem aprovação, esses artistas estão transmitindo significados políticos, sociais e estéticos alternativos, apesar das constantes tentativas do estado de limitar as fronteiras do discurso aceitável.
Para saber mais sobre o tema:
Payvand – Photos: the Murals of Tehran
Stencil Archives – Artists of the Middle East
Fat Cap – Street Art in Iran
Urban Iran – A rare look at Iran’s street art scene
Brooklyn Street Art – Icy and Sot’s “Made in Iran”
ShahreFarang – Graffiti Mine
Street Art Utopia – Street Art by Icy and Sot in Iran — A Collection
Sobre os autores:
Shahrzad Ghadjar é uma cineasta residente em Los Angeles, e Rustin Zarkar é coeditor da Ajam Rustin Zarkar.
Siga Shahrzad no Twitter @spooksvilla.