Revista Diáspora Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

Fábio Ferreira Agra

O Portão de Damasco está a alguns metros da estação de ônibus com linhas para Belém. As palmeiras prostradas em um calçadão à sua frente servem de uma bela antessala para a entrada da cidade velha de Jerusalém. Viro então as costas para aquela cadeia de pedras e seus muros. Por volta das 10h em uma manhã bonita de inverno e sol, subo no ônibus 234 que nos levaria de Jerusalém a Belém, na Cisjordânia. São menos de 20 minutos de trajeto percorrido até um sinal sonoro ser acionado pelo motorista. Ponto final. Há poucos palestinos e, menos ainda, turistas. Todos descem. Caminho em direção ao checkpoint. Entro em um limbo e atravesso um corredor meio sem saber para onde seguir. Não há informações fáceis nem guardas para indicar o caminho. Chego então diante de uma catraca de uns dois metros de altura com barras cilíndricas por onde se pode forçar a passagem. Do outro lado, há dezenas de palestinos que se amontoam. Um soldado israelense tenta organizar a saída de palestinos de Belém e a entrada de turistas e outros palestinos vindos de Jerusalém pela mesma catraca, pelo mesmo estreito moedor de gente. Observo ao meu lado um detector de metal com esteira, como os utilizados em aeroportos. Aqui só é usado apenas por quem vem de Belém. Volto meu olhar novamente para a catraca. Até então, não se sabe se do outro lado há uma fila ou apenas uma desorganização generalizada. Ela não gira. Palavras em árabe em tom de reclamação. O ambiente parece ficar tenso. Nada é imediato e todos os corpos nos dois sentidos querendo ao mesmo tempo atravessar a fronteira. Pessoas de um lado querendo ir para Jerusalém, eu tentando alcançar Belém, na Cisjordânia, por aquele caminho. Enquanto eles se apertam, o soldado dá o sinal para eu seguir. Giro a catraca na pressa. Consigo enxergar agora uma barra de ferro que forma um corredor por onde palestinos se amontoam até a boca da catraca. Não há espaço suficiente para andar e chegar ao seu final. É preciso saltar a barra de onde estou. Um senhor palestino me estende a mão quando a minha se lança ao ar para segurar o vazio. Seu apoio me ajuda a descer da barra de ferro que precisava ser pulada. A catraca agora está para trás enquanto os palestinos a rolam para se depararem com o detector de metal. Mais uma barreira. Continuo andando. Atravesso a fronteira. À minha direita, o muro está logo ali. Imenso em altura, violência e segregação. Há uma torre e algumas câmeras apontadas para Belém. Estou na Cisjordânia.

Catraca II

Dezenas de palestinos parecem voltar do trabalho. Passam por mim sorrindo, brincando. Já são mais de 4h da tarde. Estou no checkpoint novamente. No corredor com as barras de ferro que servem para delinear a fila, outros palestinos, pouco mais de dez, estão agora atravessando para Jerusalém. A catraca se movimenta lentamente. Quase inerte. Palavras em árabe. Um senhor com duas crianças, que pareciam ter por volta dos 7 ou 8 anos, não para de falar. O tom é de descontentamento. Chega minha vez de atravessar a catraca. Tento empurrá-la, mas está travada. Há uma senhora muçulmana tentando passar pelo detector de metal, que insiste em apitar. Seu corpo está preso nesse ambiente entre as duas barreiras. Ela está de vestido preto com duas estampas e um lenço preto no cabelo. O soar do apito a leva a pôr as mãos na cabeça e a murmurar. Tira os sapatos e os põe na esteira, mais uma tentativa. O apito. Os palestinos ainda do outro lado da catraca começam a falar e, pelos gestos, a sugerir que retire os brincos. Mais uma vez o apito. A senhora se desespera. Alguém aponta para os seus dentes para indicar se não há algum de metal. A senhora faz cara de choro. Outros palestinos vêm atrás de mim e me forçam a girar a catraca que fora destravada. Assim, faço. Giro-a sentindo o sangue correndo mais quente. Eles passam pelo detector sem que o apito soe. Já do outro lado, tentam argumentar com uma jovem soldada e um jovem soldado que estão dentro de uma cabine, sempre apontando para a senhora. Ela é parada mais uma vez. Estou à beira de ter meu corpo jogado à tormenta. Sei que o detector irá apitar quando eu tentar passar. Enquanto todos discutem, despejo meus pertences na esteira, inclusive souvenires palestinos, e sigo. O apito soa. Olho para dentro da cabine e vejo a discussão ainda em torno da mulher. Tentei passar despercebido, mas sou chamado a voltar pelo soldado que estava dentro da cabine. Tento argumentar, sempre com o passaporte à mão, que tenho uma prótese de metal no fêmur e por isso soou o alarme. Ele pede para eu voltar e passar pelo detector de metal. Mais uma vez o apito. Percebo que há um homem atuando como se fosse um soldado à paisana. Tento explicar-lhe. Ele se dirige ao soldado que está dentro da cabine, que me pede algum cartão que indique que uso prótese. Respondo que não tenho, não uso e que não é necessário no Brasil e nem em outros lugares. O senhor palestino que trazia as duas crianças argumentava em favor da mulher. Agora, ele se volta para mim e tenta explicar minha situação ao soldado. Tenta me ajudar. Mas diz que ali não era o Brasil quando lhe digo que não tenho o cartão e não uso no meu país. O soldado pega um telefone e conversa com alguém, provavelmente sobre minha situação. Mostro o passaporte e gesticulo agora em direção à soldada abrindo os braços e dando a entender que não sei o que fazer. Ela me olha e, repentinamente, dá um sinal para eu seguir. Ainda tenso com todo o tumulto, pego meus pertences na esteira. Mais à frente, entrego meu passaporte para o controle. Outra soldada o olha. Passo pela fronteira de volta a Jerusalém. Entro no ônibus com os outros palestinos. Agradeço ao senhor que argumentava a meu favor e também da senhora. Ele diz “São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil, amigos” para em seguida bater na cintura e abrir os braços lamentando. Esqueceu o seu cinto na esteira. “Todo dia aqui é assim”, diz sobre o caos, sobre o terror. Agora já em frente ao portão de Damascos, em Jerusalém, vem a imagem da senhora muçulmana à cabeça. Não me recordo de sua presença no ônibus.

Sobre o autor:

FÁBIO FERREIRA AGRA é doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense com pesquisas relacionadas à narrativa jornalística, migração, conflito, identidade e representação. É graduado em jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e tem mestrado pela mesma universidade em Letras: Cultura, Educação e Linguagens.
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