Em comemoração ao Dia Nacional da Comunidade Árabe, o antropólogo Rodrigo Ayupe traça uma história dos imigrantes sírios e libaneses e seus descendentes no Brasil

Rodrigo Ayupe

Apesar da dificuldade em estimar o número preciso de imigrantes árabes e seus descendentes no Brasil, haja vista que o censo brasileiro não permite o registro de identidades étnicas, estudos acadêmicos e não acadêmicos apontam para uma presença significativa de famílias e comunidades árabes, incluindo uma série de instituições, tais como hospitais, clubes, igrejas, mesquitas, restaurantes, lojas, empresas e indústrias.

Dabke na comemoração da independência do Clube Sírio e Libanês de Juiz de Fora (2012).
Foto do autor:

 

Diante disso, em comemoração ao Dia Nacional da Comunidade Árabe, celebrado em 25 de março, esse pequeno texto se dedica a apresentar o histórico da imigração árabe no Brasil, expondo as suas causas, de acordo com cada fase, e destacando o processo de formação das comunidades árabes e suas instituições, além de discutir o seu lugar na sociedade brasileira.

História da imigração árabe no Brasil

A migração árabe para o Brasil começa efetivamente por volta de 1890, quando sírios e libaneses deixam províncias pertencentes ao Império Otomano, como Beirute, Zahle, Homs, Damasco, Baalbek ou até mesmo a pequena Yabroud (80 km ao norte de Damasco) em busca de melhores condições de vida nas Américas.
Nesse período, houve uma desvalorização da sericultura árabe (síria e libanesa) no mercado europeu, devido ao aumento da concorrência com a seda chinesa, a qual invadiu a Europa após a abertura do canal de Suez, no Egito, em 1869. Com isso, os comerciantes e empresários das províncias citadas acima, de maioria cristã e que eram os maiores beneficiários dessa economia, sofreram uma queda no padrão de vida conquistado nos anos anteriores. Como alternativa para manter a situação financeira e os hábitos de consumo, decidiram deixar sua terra natal no intuito de acumular capital no exterior e regressar, brevemente, ao Oriente Médio.
Embora nas narrativas padronizadas dos imigrantes seja comum o argumento de que a diáspora se explica por uma condição de extrema miséria, a história apresentada acima, a qual se baseia nos estudos acadêmicos mais recentes acerca dessa temática, destaca a complexidade desse processo já que a maioria não se encontrava numa condição de extrema pobreza.
Do ponto de vista político-religioso, a narrativa dos imigrantes também merece uma problematização. É bastante comum nos discursos dos membros das comunidades árabes no Brasil o argumento de que esse movimento diaspórico se justificou inicialmente pela perseguição dos muçulmanos e do Império Otomano aos cristãos da região que hoje abarca o Líbano e a Síria.
Mesmo que a memória traumática dos conflitos de 1860 entre maronitas (cristãos) e drusos (de origem muçulmana), nos quais os cristãos sofreram o maior revés, e o massacre ao bairro cristão de Bab Tuma, em Damasco, tivessem um impacto no movimento imigratório, já que muitos imigrantes confessavam o medo de um novo conflito, esse fator não pode ser considerado uma causa direta, já que a diáspora começou efetivamente em 1890, trinta anos depois. Além disso, no momento em que sírios e libaneses decidem deixar sua terra natal, os cristãos contavam com a proteção francesa contra qualquer ataque muçulmano. E, por fim, o discurso da opressão otomana também deve ser problematizado, já que no Monte Líbano, por exemplo, os cristãos conseguiram uma certa autonomia administrativa através do estabelecimento de sua província autônoma (Mutessarafyia) em 1861, administrada por um governador cristão (Mutessaraf) e supervisionada pelos europeus.
O desejo de sair de seus países em direção ao continente americano foi acompanhado pelo imaginário positivo construído pelos árabes a respeito do novo mundo, em consequência do impacto dos missionários norte-americanos na região. Tal presença estrangeira permitiu aos árabes o contato com valores culturais e religiosos dos Estados Unidos baseados na ideia de prosperidade e self made man. Esse sistema de valores circulou no Oriente Médio a partir de instituições educacionais norte-americanas, com destaque para a Syrian Protestant College, atual American University of Beirut. Além disso, o processo imigratório ainda foi facilitado devido à presença de empresas e agentes da imigração que vendiam passagens de navios e divulgavam informações atrativas a respeito do lugar de destino.
A meta principal desses imigrantes era se estabelecer nos Estados Unidos, porém muitos tiveram dificuldades para conseguir o visto. Por isso, mediante as sugestões dos funcionários de imigração, eles procuraram um lugar alternativo, na maioria dos casos, a Argentina ou o Brasil. A escolha deste último foi favorecida por uma ideia que alguns tinham do país e da cultura brasileira devido às duas viagens do Imperador D. Pedro II ao Oriente Médio; e também pela propaganda positiva feita pelos agentes de imigração que apresentavam o Brasil como uma terra da promissão, devido ao desenvolvimento conquistado em consequência da economia cafeeira.
Após essa primeira fase, novas ondas migratórias chegaram ao Brasil. Dessa vez, elas contavam com redes de solidariedade formadas pelos sírios e libaneses já estabelecidos, através das quais os recém-chegados conseguiam, muitas vezes, moradia e trabalho.
A segunda fase começa nos meses que antecederam a Primeira Guerra Mundial, em 1914, no contexto em que os cristãos eram recrutados para servir ao exército otomano. Tal recrutamento causava medo e descontentamento a esses indivíduos, pois eles não tinham experiência no serviço militar, atividade exclusiva dos muçulmanos na era otomana.
Com o fim da guerra e o esfacelamento do Império Otomano, a expectativa de independência da Síria e do Líbano foi frustrada devido à criação dos mandatos franceses nos dois países, fato que levou seus cidadãos à diáspora em busca da libertação da dominação europeia. Nessa fase, tanto cristãos quanto muçulmanos, em sua maioria sírios e libaneses, compunham o grupo de imigrantes de fala e cultura árabe que desembarcavam no Brasil.
Durante a década de 1930, a vinda de imigrantes para o Brasil caiu vertiginosamente em função da política restritiva do governo de Getúlio Vargas quanto à entrada de estrangeiros no país. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial (pós 1945), já no governo Eurico Gaspar Dutra, a conjuntura econômica desfavorável em consequência da guerra fez com que uma nova geração decidisse emigrar em busca de oportunidades.
O período de guerra civil no Líbano (1975-1990) configurou a última fase de um movimento migratório significativo para o Brasil, embora não apresentasse a mesma intensidade das primeiras gerações. Eventos recentes como a Guerra do Líbano de 2006 e a guerra civil na Síria (a partir de 2011) demonstraram que, mesmo em números mais modestos que nas fases anteriores, a imigração tem sido um fenômeno constante e na qual muitos dos estabelecidos continuam ajudando os recém-chegados. No caso da guerra civil na Síria, os imigrantes costumam solicitar asilo após entrar no território brasileiro, o que tem levantado novos debates acerca da integração de refugiados na sociedade receptora e do exercício dos seus direitos.

Formação das comunidades árabes no Brasil

A formação das comunidades árabes no Brasil está associada, em primeiro lugar, às redes de solidariedade entre os imigrantes sírios e libaneses mais antigos e os que chegaram posteriormente. Mesmo com diferenças identitárias ressaltadas no lugar de origem, no Brasil os denominadores comuns eram enfatizados, como a região de origem (Oriente Médio), a língua e a “cultura árabe”.
A situação adversa de ter que se adaptar a um país estrangeiro – aprender uma nova língua, conviver com uma nova cultura, conquistar um trabalho para garantir o seu sustento – fez como que a formação de comunidades árabes locais fosse uma realidade inevitável. Além disso – e talvez seja o fator mais importante -, a luta pela sua integração na sociedade e a negociação de sua presença na nação brasileira fortaleceram a construção de comunidades em todo o país.
Um fator decisivo na consolidação dessas comunidades árabes nas cidades brasileiras e um passo importante em uma relativa integração à sociedade local foi o sucesso que muitos desses imigrantes e descendentes obtiveram na atividade comercial. Muitos deles começaram como mascates e, com o capital acumulado, conseguiram montar as suas lojas ou até mesmo fábricas. Assim, as famílias de comerciantes e industriais árabes mais afluentes de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, e Juiz de Fora investiram parte do capital conquistado na construção de instituições desportivas, de sociabilidade e religiosas, as quais têm materializado a ideia da comunidade árabe no espaço e na sociedade brasileira.
Nos espaços do Esporte Clube Sírio, em São Paulo, do Monte Líbano, no Rio de Janeiro, ou então do Clube Sírio e Libanês de Juiz de Fora, as atividades oferecidas nos moldes de lazer, tais como bailes de carnaval e réveillon, shows, jogos, banho de piscina e jantares atraíam tanto as famílias árabes mais prósperas quanto as brasileiras. Com isso, as comunidades árabes davam passos importantes na sua integração na medida em que se tornavam cada vez mais desejáveis como parte da sociedade mais ampla.
Ademais, as instituições religiosas também contribuem com a integração dos imigrantes árabes e seus descendentes na sociedade brasileira. Os espaços sagrados cristãos, tais como as igrejas maronitas e greco-católicas (melquitas), têm sido importantes ao atrair fiéis para as suas celebrações religiosas na medida em que permitem empréstimos da religiosidade local. As mesquitas sunitas e xiitas também se destacam nesse processo devido à convivência entre brasileiros (convertidos) e árabes nas suas orações de sexta-feira ou em outras atividades.

Se, por um lado, a integração árabe tem sido construída através da atração de brasileiros de classe média, seja pelos clubes ou pelas instituições religiosas, por outro, esses mesmos espaços também atraem as classes menos favorecidas através de suas obras de caridade e sociedades beneficentes.

Apesar do papel de destaque dessas instituições na luta dos árabes pela sua integração na sociedade brasileira, a partir da década de 1980, período de crise econômica no país, muitas delas passaram por problemas financeiros e, por isso, diminuíram o número de atividades enquanto outras fecharam suas portas. Todavia, isso não significou o enfraquecimento das comunidades árabes, uma vez que elas encontraram na esfera pública um caminho favorável para a expressão dos seus itens culturais distintivos e a afirmação de sua identidade étnica.

Comunidades árabes no Brasil contemporâneo

O maior reconhecimento dos grupos étnicos no Brasil contemporâneo, somado à popularização de itens culturais distintivos como a dança e a comida, se deu sobretudo por meio do destaque midiático à “cultura árabe” após o sucesso do filme Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho (2001), e da novela O Clone, da Rede Globo (2001). A partir de então, tem ocorrido uma febre de consumo de itens árabes, o que tem estimulado os membros das comunidades árabes, e até mesmo não árabes, a inaugurarem restaurantes especializados na culinária médio-oriental, academias de danças do ventre, lojas de bijuterias, agências de viagens, blogs e páginas no facebook com informações sobre o Oriente Médio.

Apesar das inegáveis conquistas dos imigrantes e seus descendentes rumo à sua integração na sociedade brasileira ao longo da história da sua presença no país, com um relativo papel de destaque para a cultura e a identidade árabes no contexto atual, a luta dos membros das comunidades árabes para afirmar e reafirmar a sua existência no Brasil é um processo constante. Do mesmo modo, são atuais e constantes a resistência contra o desrespeito às diferenças e o combate ao preconceito que a categoria “árabe” ainda sofre.

Sobre o autor:

Rodrigo Ayupe é doutor e mestre em Antropologia pelo PPGA/UFF, e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM/UFF). É autor do livro Primos em Minas: processos de construção identitária na Comunidade Árabe de Juiz de Fora. Rio de Janeiro: Autografia, 2018. Desde 2014, realiza trabalho de campo no Líbano.

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