A jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh fala sobre o Apartheid palestino e sobre as ofensivas de Israel em conquistar mercados em toda a América Latina

Por Soraya Misleh

Jornalista palestino-brasileira, especialista em Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mestre em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo. Diretora do ICArabe –  Instituto da Cultura Árabe.

 

Em 9 de julho de 2005, a sociedade civil palestina fez um chamado internacional por BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel. Reiterado desde então, traz como proposta que governos e sociedade civil de todo o mundo promovam embargos e sanções a Israel até que se reconheçam os direitos fundamentais do povo palestino. Assim, tem como metas: o fim imediato da ocupação militar e colonização de terras árabes e a derrubada do muro de segregação, sendo construído na Cisjordânia desde 2002, que divide terras, famílias e impede a livre circulação; a garantia de igualdade de direitos civis a todos os habitantes de Israel, independentemente de religião ou etnia; e o respeito ao direito de retorno dos milhares de refugiados palestinos às suas terras e propriedades, de onde vêm sendo expulsos há mais de 67 anos.

Face a imagens e fatos que comprovam o apartheid a que tem sido submetida essa população, em diversas partes do globo a campanha do BDS tem se intensificado. Na Europa, por exemplo, governos vêm desinvestindo em contratos com empresas israelenses. Em todo o mundo, cidadãos comuns recusam-se a comprar produtos oriundos da potência ocupante, sindicatos e intelectuais têm se engajado nessa luta, bem como universidades têm cancelado convênios de cooperação com instituições que mantêm e legitimam o regime de segregação.

No Brasil, onde a campanha nacional foi lançada formalmente em setembro de 2011, organizações sociais, estudantis, sindicais e populares têm impulsionado a iniciativa. Tal ação faz-se fundamental perante a forte ofensiva por parte de Israel em conquistar mercados aqui e em toda a América Latina. Investida essa, que tem encontrado guarida por parte do governo brasileiro, na contramão da tendência de fortalecimento do BDS ao apartheid de Israel em outras partes do globo e em franco descumprimento das suas obrigações em não assistir a violações do direito internacional. Nessa linha, o país ratificou em 2007 o TLC (Tratado de Livre Comércio) Mercosul – Israel, e tem ampliado os acordos militares com o Estado sionista. Além disso, transforma o Brasil em porta de entrada para a indústria armamentista de Israel na América Latina.

A cooperação e os contratos militares vêm sendo facilitados por um acordo de cooperação de segurança firmado entre a potência ocupante e o Executivo Federal em novembro de 2010. Fortalecendo essa parceria, as Forças Armadas brasileiras abriram um escritório em Tel Aviv, em 2003. E tem havido constantes intercâmbios, com delegações daqui sendo enviadas para o Estado sionista e de lá sendo acolhidas no território nacional – o qual tem servido como ponte para que empresas israelenses entrem em contato com países latino-americanos, conforme declarações dadas publicamente por autoridades brasileiras.

Complementa esse apoio a instalação no país de indústrias especializadas em tecnologia de defesa, como a Elbit Systems, em Porto Alegre. Essa empresa, segundo denunciou a organização palestina Stop the Wall, “fornece armas que o Exército israelense usa para o assassinato de civis, bem como equipamentos para o muro do apartheid e os assentamentos na Cisjordânia”. A também israelense International Security and Defence Systems (ISDS) – com amplo histórico de violações de direitos humanos do povo palestino e cumplicidade com a repressão durante as ditaduras na América Latina – aparece como uma das fornecedoras oficiais dos Jogos Olímpicos de 2016, a serem sediados no Rio de Janeiro – o que tem sido objeto da campanha “Olimpíadas sem Apartheid”.

Iniciativas como essa levaram o Brasil a alçar a vergonhosa classificação de um dos cinco maiores importadores de tecnologia militar israelense. Por essa razão, o embargo militar é foco central do BDS Brasil, que já obteve algumas vitórias. Entre elas, a suspensão de memorando de entendimento entre a companhia de saneamento israelense Mekorot – responsável pelo apartheid da água – e as companhias estaduais de saneamento de São Paulo e da Bahia, bem como o cancelamento de acordo que permitiria a ampliação da Elbit em Porto Alegre.

Cessar a cooperação acadêmica e cultural

Essa é outra linha de frente nessa luta. Entre seus adeptos está o cantor Roger Waters. Conforme escreve o ativista Omar Barghouti em “BDS – Boycott, Divestment, Sanctions: the Global Struggle for Palestinian Rights”, o chamado palestino reivindica: cessar qualquer forma de cooperação acadêmica e cultural, colaboração ou projetos com instituições israelenses; suspender todas as formas de fundos e subsídios a essas e ‘desinvestir’ nelas; trabalhar para condenar as políticas de Israel e pressionar pela adoção de resoluções nesse sentido; apoiar instituições acadêmicas e culturais palestinas sem contrapartida em relação ao Estado sionista. A prisão sistemática de intelectuais por parte de Israel pode servir de ingrediente a fortalecer essa iniciativa.

No Brasil, denunciar arbitrariedades como essa é tarefa essencial da campanha pelo BDS, perante um quadro nada alentador em que instituições de ensino superior têm firmado convênios de cooperação com instituições israelenses. Além de afronta ao direito internacional, tais acordos funcionam, como afirmou Indra Habash, em artigo de sua autoria sobre o tema, “como instrumento facilitador e normalizador da situação de ilegalidade das colônias israelenses, da construção do muro de separação e dos crimes cometidos contra os palestinos”. A autora divulga em seu texto o relatório do AIC (Alternative Information Center), que não deixa dúvidas sobre isso. Ela aponta que “todas as principais instituições acadêmicas em Israel estão envolvidas na ocupação e apoiam plenamente as forças de segurança israelenses e suas políticas em relação aos palestinos”. E ainda que a educação ali “não é isenta de questões políticas e suas universidades são parte indispensável do regime de apartheid israelense”. Frente a isso, a autora conclui: “A longo prazo, os países e suas instituições perderão credibilidade se não defenderem, de fato, o direito internacional e humanitário e os valores universais garantidos ao povo palestino, incluindo os direitos à autodeterminação, à igualdade e ao retorno.”

Por que apartheid

“A definição legal para Apartheid se aplica a qualquer situação no mundo em que se encontram três elementos centrais: dois grupos raciais podem ser identificados; atos desumanos são cometidos contra o grupo subordinado; e ações são cometidas sistematicamente no contexto de um regime institucionalizado de dominação de um grupo sobre outro.”

O conceito foi apresentado pelo Tribunal Russell sobre a Palestina em sessão realizada em novembro de 2011 na África do Sul, que concluiu ser o regime imposto por Israel aos palestinos de apartheid.

A conclusão fundamenta-se em fatos. Entre eles, a discriminação cotidiana imposta aos palestinos que vivem desde 1948 sob o estado etnocrático de Israel – cerca de 1,5 milhão (20% do total da população que ali se encontra). Apesar de terem direito a voto, não têm reconhecidos os mesmos direitos humanos que o restante da população, por não serem judeus. Além disso, os 3,9 milhões que vivem nos territórios ocupados ilegalmente por Israel em 1967 – ou seja, Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – não podem transitar livremente entre as cidades da Palestina, submetidos a uma diferenciação nas cores de placas de automóveis e documentos de identidade. Há estradas exclusivas para colonos judeus e uma série de aparatos, como muros, cercas, checkpoints, que impedem ou dificultam sua circulação, garantem a colonização sobre as terras árabes e o controle militar por parte da potência ocupante.

O regime de apartheid, como observou o Tribunal Russell, é proibido pela lei internacional e considerado crime contra a humanidade – determinação motivada pelo modelo que prevaleceu na África do Sul até os anos 90 de segregação de negros e sua distinção em relação aos brancos. Segundo a jornalista Naomi Klein denuncia em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, “as semelhanças são grandes, mas há diferenças também. Os bantustões da África do Sul eram, essencialmente, acampamentos de trabalho, uma forma de manter os trabalhadores africanos sob estreita vigilância e controle e forçá-los a trabalhar nas minas por baixos salários. Israel construiu um sistema destinado a fazer o oposto: impedir que os trabalhadores trabalhem, com uma rede de amplas cercas de contenção, para milhões de pessoas classificadas como humanidade excedente”. Em outras palavras, enquanto os negros na terra de Nelson Mandela eram autorizados a sair dos guetos mediante passes para servir de mão de obra barata, nos territórios ocupados, imigrantes foram usados como substituição à força de trabalho nativa. Esses, ainda segundo Klein, serviriam para consolidar a face mais visível da agressiva colonização israelense – com a multiplicação de assentamentos judeus em terras palestinas, impulsionada em especial por uma leva de russos após os acordos de Oslo em 1993. Entre esse ano e 2000, o número de colonos dobrou, conforme escreveu a jornalista.

Como demonstra a autora no livro “A doutrina do choque”, Oslo foi um ponto de virada numa política que sempre teve na sua base a limpeza étnica dos habitantes nativos – os palestinos. De 1948, ano que marca a sua nakba (catástrofe), com a criação unilateral, em 15 de maio, do Estado de Israel, até então havia certa interdependência econômica, a qual foi interrompida. “Todos os dias, cerca de 150 mil palestinos deixavam suas casas em Gaza e na Cisjordânia para limpar as ruas e construir as estradas em Israel, ao mesmo tempo em que agricultores e comerciantes enchiam caminhões com produtos para vender em Israel e em outras partes do território”, aponta Klein na sua obra. Após os acordos de 1993, Israel se fechou a essa mão de obra, que desafiava o projeto sionista de exclusão dessa população. Simultaneamente, passou a se apresentar, nas palavras da jornalista, “como uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Em seu livro, a autora afirma que, ao final de 2006, ano de invasão de Israel ao Líbano, a economia do Estado sionista, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%), ao mesmo tempo em que acentuou-se a desigualdade social dentro de Israel e as taxas de pobreza nos territórios palestinos alcançaram índices alarmantes (70%).

Para transformar essa realidade, a campanha do BDS a Israel é estratégica. Elevá-la ao topo da lista da solidariedade internacional pela Palestina é, portanto, tarefa urgente.

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