Liza Dumovich

“Allahu akbar, Allahu akbar”. A chamada para a oração das primeiras horas me desperta a seu lado. Pouco me lembro da noite que ainda não terminara – páginas soltas do jornal dormido pelo chão,  o chá frio em cima da mesa e a metade cheia da última garrafa de Côtes de l’Oronte 2006. Aqui dentro, o abajur é fraco; do lado de fora, a escuridão. Procuro o minarete, mas vejo o vazio de Alepo. Por um momento, duvido de onde estou.

Ele dorme como morto, pesado e espaçoso. O nome é italiano, mas parece um sueco. Ignoro de onde é. Vem da Áustria e fala inglês, mas não importa. As tatuagens, um relevo negro na pele alva, os dedos da mão esquerda tocam o chão. Parece que ele vai ficar.

“Allahu akbar, Allahu akbar”. Preciso fazer ablução. Novamente meus olhos buscam a janela, ainda a ausência. Não, não pode ser – que dia é hoje? O vento espalha ainda mais o jornal que meu braço não alcança. Côtes de l’Oronte 2006.

Os pés tocam o chão e me percorre um arrepio. Do parapeito, não há minarete algum, me debruço e vou cair. Um breve recuo e me salvo, mas até quando não sei. Esbarro no corpo imóvel e caio na cama novamente. A ablução! Eu me levanto, entretanto, a chamada que ouço não é para a oração do fajr: pedem sangue pelo alto-falante, alguém fora atingido e precisa de doadores. Mais uma vez não posso ir.      

O sol começa a dar à luz o dia, mas ainda não consigo ver o minarete. Penso no cheiro da poeira dominante, na aspereza seca do dia, enjoo. As janelas ficariam melhor fechadas. Preciso fazer ablução. Corpo mole, cambaleio. Ainda tem tempo, me sirvo de mais alguns segundos.

Vou me levantar, mas a luz já é demasiada e uma nova contração das pupilas me impede de qualquer coisa. Permaneço deitada ao lado do corpo, o imóvel. Já não me lembro de quanto tempo ele está ali. Não lembro que dia é hoje. Houve estrondos, mas ultimamente é quase tudo o que se ouve. Torno a buscar a janela, o minarete ausente. Quero falar, mas o som sai seco, é a poeira, é o Côtes de l’Oronte 2006.  

É 2013, abril, talvez 25.

SOBRE A AUTORA:

 

Liza Dumovich é Antropóloga e Coeditora da REVISTA DIASPORA.

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