Líder político preso e influência da Internet: confira o artigo de Ilker Hepkamer, que demonstra que a atual política da Turquia e do Brasil têm muito em comum.

Texto de Ilker Hepkaner, originalmente publicado em inglês pelo Ajam Media Collective. Traduzido para o português para a Revista Diáspora por Diego Gebara Fallah.

LINK TEXTO AJAMMC: https://ajammc.com/2018/06/20/google-ads-turkey-elections/

No dia 24 de junho, a Turquia foi às urnas para a eleição mais disputada dos últimos tempos. Eleitores votaram nas eleições parlamentar e presidencial. Entretanto, o pleito também decidiu o futuro político de Erdoğan. Todos os partidos de oposição afirmaram em seus programas que pretendiam reverter o sistema presidencial instaurado pelo líder turco, aceito por uma pequena margem em um referendo de 2017. Às vésperas da eleição, pesquisas de opinião indicavam um parlamento dividido e um segundo turno para a eleição presidencial. O estado de emergência ainda estava vigente durante o período eleitoral e a mídia sofreu grande pressão de Erdoğan, por isso, a oposição utilizou estratégias para contornar a onipresença do presidente turco e de seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP).

Nesse contexto, a campanha tradicional do AKP foi eclipsada pela criatividade dos partidos de oposição na disseminação de sua mensagem anti-Erdoğan. A ciberestratégia da oposição mira em se infiltrar nos hábitos online do eleitorado para oferecer um futuro sem o despotismo do atual governo. Dessa forma, os partidos de oposição surfaram uma nova onda na campanha online, que focou em grupos específicos de eleitores, em vez de gerar conteúdo para os seus próprios grupos políticos.

Contexto das eleições turcas de junho de 2018

As apostas estavam altas para os movimentos anti-Erdoğan no país. A nova lei eleitoral aceita pelo AKP em 2018 aumentou a importância das eleições parlamentares. Ela permite alianças, e com a Aliança do Povo (Cumhur İttifakı), a AKP conseguiu manter a maioria no parlamento auxiliada pelo Partido do Movimento Nacionalista (Milliyetçi Hareket Partisi) – a fração pró-Erdoğan dos ultranacionalistas. Eles foram desafiados pela Aliança da Nação (Millet İttifakı), formada pelo voto secular do Partido Popular Republicano (CHP), pelo voto ultranacionalista anti-Erdoğan do Partido İyi e, ainda, por dois partidos opositores de direita. O objetivo era destruir a maioria parlamentar da Aliança do Povo, o que não se concretizou.

Pesquise “liberdade” no Google, ache o Partido İyi

No desafio de converter ultranacionalistas que são pró-Erdoğan, o Partido İyi foi pelo caminho não convencional do Google Adwords. Em troca de uma taxa, esse serviço do Google oferece às empresas as primeiras linhas dos resultados de busca para palavras-chave relacionadas ao serviço. Por exemplo, uma pequena loja de bicicletas paga ao Google pelas primeiras linhas na página de resultados para as buscas “loja de bicicletas” ou “conserto de bicicletas”.

O Partido İyi tomou uma posição estratégica nesse esquema. Eles compraram os primeiros resultados para palavras-chave que aparentemente não possuem teor político, como “interpretação de sonhos” e “quarto vago”.

A primeira linha do resultado era normalmente uma pergunta ao usuário do Google, e a segunda é uma resposta direta que contém a mensagem política do Partido İyi. Por exemplo, quando alguém buscava por “interpretação de sonhos”, o anúncio do Partido İyi perguntava: “Você está tendo pesadelos? Suas noites estão muito longas?”. O Partido İyi respondia à pergunta com o seu próprio símbolo, que é o sol: “Solução miraculosa! Pegue sol para se livrar de pesadelos.”

Fonte: Onedio.com

 

As mensagens não eram sempre sutis. Se o usuário do Google estivesse procurando quartos vagos, o anúncio do Partido İyi sugeria um quarto no palácio extravagante de Erdoğan em Ancara. Uma das principais promessas da campanha do partido era que o palácio desse líder, um símbolo de sua megalomania, deveria ser entregue ao público no dia 25 de junho caso ele perdesse as eleições.

Mensagem recebida do HDP

Enquanto o Partido İyi comprava anúncios do Google, o HDP (Partido Popular Democrático, curdo e progressista) utilizava a Internet com um orçamento menor e restrições consideráveis. Um dos ex-dirigentes do HDP, Selahattin Demirtaş, estava preso desde novembro de 2016. O governo aprisionou Demirtaş sob a justificativa de organização e apoio a atividades terroristas, mas os promotores não apresentaram nenhuma evidência concreta para comprovar essas alegações. Muitos outros deputados e lideranças do HDP foram detidos e aguardam julgamento. Além disso, comitês do partido são constantemente atacados por apoiadores da Aliança do Povo.

A mensagem do HDP não obteve nenhum tempo de TV nos canais públicos, enquanto Erdoğan e a Aliança do Povo dominavam a programação. Alguns horários restantes eram divididos entre o CHP e o Partido İyi, tornando a disputa ainda mais injusta para o HDP. Apesar disso, o candidato à presidência do HDP, Selahattin Demirtaş, achou meios para disseminar a sua mensagem entre potenciais apoiadores.

A mensagem pró-paz e pró-justiça de Demirtaş foi difundida por cartas e cartões postais que ele escrevia da prisão. Essas comunicações eram escaneadas por membros do HDP, e seus apoiadores compartilhavam esses “panfletos digitais” para os seus contatos no celular, especialmente pelo WhatsApp. Em uma das cartas, Demirtaş pediu para que seus eleitores enviassem a sua mensagem para pessoas que talvez considerassem votar no HDP nas eleições parlamentares, para impedir a formação de uma maioria da Aliança do Povo no parlamento. Ele também pediu votos para si próprio nas eleições presidenciais, no intuito de evitar que Erdoğan fosse eleito no primeiro turno.

Um dos “panfletos digitais” de Demirtaş. Fonte: Twitter.

 

Demirtaş, impossibilitado de deixar sua cela na prisão, também fez um discurso eleitoral viabilizado por um complexo uso da mídia. Em um vídeo que começou a circular três semanas antes da eleição, seus amigos e família se reuniam em sua casa, quando Başak Demirtaş, a mulher do líder encarcerado, recebe uma ligação do marido. Após se cumprimentarem, Selahattin Demirtaş lê o seu discurso para a sua mulher, que o disponibiliza para os seus amigos pelo alto-falante, e para a câmera, que o grava.

O vídeo, feito profissionalmente com uma câmera de alta resolução e editado com trilha sonora, foi assistido por mais de 800 mil pessoas em um dia somente no Facebook. A filmagem também foi postada no Twitter, YouTube e outras plataformas digitais. Foi também compartilhado, assim como as cartas escritas por Demirtaş, em aplicativos de mensagens, como o WhatsApp. Ao nomearem o vídeo de “comício eleitoral nas redes sociais”, Demirtaş e o HDP tornaram a desvantagem do encarceramento do seu candidato à presidência em vantagem para disseminar uma mensagem de igualdade.

A aparência dos familiares de Demirtaş complementou a sua mensagem de justiça e desenvolvimento econômico para todos. Eles pareciam ser de todos os estilos de vida da Turquia. Os presentes na reunião eram majoritariamente mulheres, idosas e jovens, em roupas tradicionais e modernas, mas todas apoiando uma mensagem otimista com seus comentários e expressões faciais. Dentre os presentes havia também homens jovens e idosos, vestidos de forma modesta. Seu aspecto oferecia um contraste de classe frente aos homens do círculo pessoal de Erdoğan, que frequentemente vestem ternos de marca.

LINK PARA VÍDEO: https://www.youtube.com/watch?v=wKdZBn_8Tg8https://www.youtube.com/watch?v=wKdZBn_8Tg8

Falha na mensagem do AKP

Enquanto isso, a campanha do AKP pelo voto curdo, chave para o resultado das eleições, foi bem tradicional e cheia de erros. Durante um comício, Erdoğan ameaçou abertamente o prisioneiro Demirtaş com a pena de morte, insinuando que ele não faria oposição a um enforcamento do líder. A ansiedade do presidente turco relacionada a Demirtaş e ao HDP revelou-se também de outras formas. Em um vídeo vazado de uma reunião da alta cúpula do partido, no qual Erdoğan pediu aos presentes sigilo, o presidente afirmou a importância de deixar o HDP fora do parlamento para a vitória do AKP.

A nova campanha online e seu conteúdo tradicional também não alcançaram a criatividade de seus opositores. Em uma jogada para atrair eleitores curdos, o AKP lançou propagandas eleitorais em curdo. No contexto político em que foram lançados, o conteúdo dessas propagandas atingia mais a própria base do partido do que a população curda. Por exemplo, um dos anúncios possuía uma visão totalmente orientalista desse grupo étnico. Enquanto promoviam mensagens de fraternidade entre os turcos e os curdos, atores interpretavam papéis de trabalhadores rurais e de classe baixa em paisagens rurais das regiões sudeste do país. Essa estética e esse discurso limitam o lugar da população curda na Turquia do AKP, sob liderança de Erdoğan.

LINK PARA VÍDEO: https://www.youtube.com/watch?v=CZJoJ1HeftU

Em um outro vídeo, filmado em Amed, também conhecida como Diyarbakır, os atores pediam apoio ao AKP alegando que o partido trouxe segurança e ordem à cidade. Essa propaganda, ironicamente, foi feita em Sur, o distrito central da cidade que foi destruído por forças governamentais em 2015 e 2016. O posicionamento do AKP como provedor de segurança ignora o fato de que uma operação militar por ele liderada matou centenas de pessoas e deixou mais de 350 mil desalojados.

A parte visual e o discurso das propagandas do AKP aparentaram estar repetindo os discursos do partido sobre desenvolvimento e segurança para a sua própria base, enquanto não necessariamente continham uma mensagem específica para os eleitores curdos, que enfrentam a repressão estatal liderada pelo AKP pelo país. A campanha tradicional do AKP, suas mensagens e métodos, contrastaram com os métodos criativos da oposição e suas premissas de liberdade, democracia e um futuro sem Erdoğan.

LINK PARA VÍDEO: https://www.youtube.com/watch?v=t-FZ-yhdicA

 

As eleições

A oposição não estava completamente unida, apesar da mensagem anti-Erdoğan adotada por todos. Por exemplo, o Partido İyi e o HDP não concordam em diversos assuntos, como a questão curda e os refugiados sírios. O Partido İyi até pediu para que o CHP e outros partidos mantivessem o HDP fora de sua coligação, um movimento político com o objetivo de apaziguar os ânimos de sua base eleitoral ultranacionalista. Apesar disso, a estratégia utilizada na Internet pela oposição envolveu mais do que mensagens anti-Erdoğan. Ela se tratava de imaginar a Turquia após o fim da liderança do AKP. A esfera pública ainda resiste às aspirações do AKP e de Erdoğan em controlar completamente a propaganda eleitoral que atingia os eleitores. Cada exemplo mencionado acima, em seu conteúdo e forma, interferiu nas atividades diárias e na comunicação dos eleitores.

Alguém que não possuía nenhuma intenção de consultar o programa de governo do Partido İyi poderia se encontrar no site do partido enquanto buscava um site de uma agência de viagem. Um eleitor do CHP com pouco acesso às mensagens do HDP na mídia tradicional recebia mensagens do partido curdo pelo telefone de um amigo que acreditava que a mensagem de Demirtaş deveria ao menos ser lida ou escutada. É claro que analisar o programa do Partido İyi e apertar o play no discurso de Demirtaş eram atitudes que ficavam por conta do público.

Enquanto isso, o AKP produziu conteúdo para os seus próprios eleitores, não oferecendo muito que pudesse prevenir a diminuição da sua zona de influência. A potência dessas estratégias foi analisada nas eleições do dia 24 de junho, que deram a vitória para Erdoğan no primeiro turno, com 52% dos votos, um pouco acima dos 51% necessários. Houve indícios de fraudes e o voto no HDP foi considerável, garantindo algumas dezenas de cadeiras para o partido curdo e progressista.

Erdoğan venceu, mas a oposição demonstrou que está mais organizada para encontrar caminhos de contrariar o “governo de um homem só” no país. Mesmo que o atual presidente tenha vencido, a oposição chega cada vez mais perto de interferir na comunicação da Turquia de Erdoğan, oferecendo novas alternativas aos 16 anos de domínio do AKP.

 

Para saber mais:

Monique Sochaczewsky. A​ ​popularidade​ ​de​ ​Erdoğan. Revista Diáspora. 12 dez. 2016. Disponível em: </neom.uff.br/2016/12/12/a%E2%80%8B-%E2%80%8Bpopularidade%E2%80%8B-%E2%80%8Bde%E2%80%8B-%E2%80%8Berdogan/>

Liza Dumovich. De atentados a bomba à morte da democracia. Revista Diáspora. 12 ago. 2016. Disponível em: </neom.uff.br/2016/08/12/16444/>

Monique Sochaczewsky. O drama sírio é também uma tragédia turca. Revista Diáspora. 12 dez. 2015. Disponível em: </neom.uff.br/2015/12/12/o-drama-sirio-e-tambem-uma-tragedia-turca/>

Monique Sochaczewsky. Sobre a Rússia e os turcos. Revista Diáspora. 02 mai. 2017. Disponível em: </neom.uff.br/2017/05/02/sobre-a-russia-e-os-turcos/>

Liza Dumovich. Tempero das mãos: sabores privados do Ramadan na Turquia. Revista Diáspora. 02 ago. 2016. Disponível em: </neom.uff.br/2016/08/15/16513/>

Tiago Duarte Dias. Barzani e a aposta no plebiscito no Curdistão: consequências de uma carta equivocada. Revista Diáspora. 1 ago. 2017. Disponível em: </neom.uff.br/2017/11/04/barzani-e-a-aposta-no-plebiscito-no-curdistao-consequencias-de-uma-carta-equivocada/>

Kelen Pessuto. O cinema de resistência curdo. Revista Diáspora. 12 fev. 2017. Disponível em: </neom.uff.br/2017/02/12/o-cinema-de-resistencia-curdo/>.

Monique Sochaczewsky. Ler e ver o Oriente Médio. Revista Diáspora.12 fev. 2017. Disponível em: </neom.uff.br/2017/02/12/ler-e-ver-o-oriente-medio/>

Sobre o autor:

Ilke Hepkaner é doutorando do Departamento de Estudos do Oriente Médio e Islâmicos da NYU. Sua dissertação foca a identificação de judeus provenientes da Turquia em Israel pela perspectiva da política, do espaço, herança e cultural visual. O seu Twitter é @hepkaner.
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