Durante o período de oito meses em que morei no Cairo para a realização de minha pesquisa de mestrado em Antropologia, entre 2014 e 2015, tive a oportunidade de me embrenhar pela cidade, conhecendo as especificidades culturais e o cotidiano das pessoas que circulam em cada um dos seus bairros. Nas fotografias que compõem o presente ensaio, busco “apresentá-lo” a partir de um dos recortes possíveis, destacando alguns dos aspectos que considero mais enriquecedores dentre as inúmeras possibilidades que se apresentaram durante a sua seleção e ordenação.

Estive no país em um momento posterior às conturbadas manifestações sociais do ano de 2011, a então chamada “Revolução Egípcia”, em meio a uma onda revolucionária que tomou conta dos movimentos sociais de contestação aos regimes políticos ditatoriais ao redor de vários países do Oriente Médio, denominada “Primavera Árabe”.

O que direciona o meu olhar nesse ensaio é a tentativa de captar o Cairo através de uma observação dos fenômenos cotidianos, entendendo-os como inacabados e em processo, captados como momentos-sínteses de situações reais. Ao mesmo tempo, busco uma narrativa compreensiva, evitando representações ou idealizações do que seria um Cairo, ao evidenciar a presença de vários Cairos dentro de uma única cidade: uma entidade viva, cuja pele vai se alterando com a passagem do tempo e cujos espaços estão sendo continuamente repensados e reinventados pelos cidadãos.

Ao me debruçar sobre outros trabalhos que procuram demonstrar incessantemente o que seria a cidade do Cairo, me dei conta da quantidade de representações empregadas no intuito de explicar esse espaço. Porém, elas acabam mostrando-se incapazes de evidenciar as múltiplas agências e subjetividades ali presentes. Nessas representações, é recorrente a ênfase na existência de uma cidade dual, marcada por contradições, que segundo esses trabalhos seriam insustentáveis a longo prazo. É mostrada uma cidade desigual, espacialmente segregada, economicamente polarizada e altamente militarizada, sendo percebida como uma “bomba populacional”, epicentro de poluição e tráfego, e como um laboratório de células terroristas que, de tempos em tempos, entram em ebulição.

O Cairo, portanto, tem sido mostrado para o mundo como uma cidade globalizada, capital do mundo árabe, bem como a maior e mais diversa metrópole que faz interseção entre o Oriente Médio, o Mediterrâneo e a África, ou ainda ponto de passagem de migrantes que saem do continente em direção à Europa. Ao mesmo tempo, sede da Liga Árabe, da União Africana (AU), guardião dos maiores patrimônios arqueológicos da humanidade e portador de um status privilegiado em termos de estabilidade regional, através de estratégicas ajudas financeiras americanas para manter a região pacificada.

É considerado, ainda, o “melting pot for the arab culture”, segundo Paul Amar e Diane Singerman, tendo em vista a sua grande produção cultural e propagação de novelas e filmes que disseminam o dialeto árabe egípcio (fusha) ao redor do chamado mundo árabe e muçulmano. Além de ter sido o primeiro país a lançar um canal de satélite de televisão nos anos 1990, é também local de origem das mais respeitadas e reconhecidas belly dancers (Fifi Abduh, Dina, Lucy, etc) e do maior recitador do Alcorão – um shaykh egípcio – no mundo árabe.

É entendido, ainda, enquanto um arquipélago de micro-cidades, que se divide entre uma elite que opta por um estilo de consumo de padrão mais elevado, refugiando-se da poluição e do perigo nos chamados enclaves, com mansões e carros de luxo. Esse seria um estilo de vida globalizado, chamado muitas vezes de “americano-mediterrâneo” e que reforça a dicotomia entre o fahall (lavrador, população rural mais pobre) e o hadari (moderno, urbano). Essas formas de consumo, ao mesmo tempo, acabam por acarretar a reinvenção de novos estilos de vida e também por remodelar o espaço público e as relações sociais no Cairo. Essa negociação por uma identidade egípcia transnacional produz uma bricolagem local-global e, ao mesmo tempo, uma sensação ilusória e momentânea de apagamento da pobreza, considerada por alguns autores, como Mona Abaza, uma “invenção da tradição e folclorização da cultura”.

Dessa forma, o consumo cultural no Cairo acaba dividindo a cidade em um espaço segregado, onde o centro (west al balad) vem se tornando cada vez mais um local de concentração e circulação de populações mais pobres (baladi), com uma ampla variedade de cafeterias populares (baladi qahwas). Isso vem em contraposição ao estilo de vida presente nas regiões mais distantes de Nasr City e New Cairo, onde há uma grande concentração de condomínios residenciais, shoppings e áreas de lazer, que impedem a entrada de pessoas portando roupas tradicionais (gallabiyya, abayya e niqab), consideradas uma ameaça a um estilo de vida mais moderno.

Por outro lado, após as manifestações de 2011, percebo uma transição na forma como essas representações da cidade do Cairo têm sido disseminadas, passando muitas vezes a ser percebida enquanto uma cidade de contestação e de efervescência, de inúmeros movimentos sociais que buscam a justiça de gênero e direitos sexuais no país. Ao mesmo tempo, tem sido mostrado como um local de tensões frequentes entre política, religião, cultura e espaço urbano, continuamente questionados pela juventude local vibrante, através dos meios de comunicação.

O presente ensaio, portanto, tem como objetivo descrever e mostrar algumas das chamadas “contradições” presentes nos diversos espaços da cidade do Cairo. Como antropóloga, busquei ressaltar, através dessas fotografias, alguns aspectos minuciosos do cotidiano das pessoas, imersos e mesclados na realidade cairota. Tenho plena consciência de que a fotografia é capaz de fabricar uma construção mental de um povo, a partir das representações captadas, e que, por sua vez, contribuirão para a idealização desse grupo pelo leitor. Além disso, me mantive consciente de que as imagens não são meros recortes visuais da realidade, mas que condensam e fixam representações sobre o mundo, refletindo sempre um tipo de enquadramento e escolha do autor.

O meu interesse por essas imagens deve-se às suas habilidades enquanto extensões de nossa capacidade de enxergar, permitindo não somente expor o que é visível, mas também perceber os detalhes minuciosos, parando e congelando o momento. Elas permitem, ainda, apreender o inesperado e imprevisível da situação, destacando um aspecto dentro da realidade que se encontra disperso. Nesse sentido, o que busquei com o conjunto das imagens foi realçar a existência de uma multiplicidade de Cairos, que não necessitam de coerência para existirem. Deixo, portanto, a interpretação desse cotidiano rico e complexo mostrado nas imagens ser novamente reinterpretado e compreendido pelos múltiplos olhares do leitor.

 

 

Para saber mais:

Mona Abaza. “Changing Consumer Cultures of Modern Egypt”. Editora: The American University Press, 2006. Paul Amar e Diane Singerman. “Cairo Cosmopolitan. Politics, Culture and Urban Space in the new globalized Middle East”. Editora: The American University Press, 2006.

Sobre a autora:

Doutoranda e Mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Graduação em Ciências Sociais – Sociólogo (Bacharel) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (2010-2014). Atualmente trabalha com estudos do Oriente Médio, em especial a violência de gênero e é pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM/UFF).
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