Revista Diáspora
Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

Júlia Tibiriçá Diegues Gomes mostra como as neofronteiras dos territórios ocupados, sejam elas geográficas, online ou pessoais, permeiam o cotidiano palestino

Júlia Tibiriçá Diegues Gomes

Em “Palestinian Identity: The construction of Modern National Consciousness” (2009), o autor Rashid Khalidi, historiador palestino, afirma que a experiência fundamental que determina a identidade palestina contemporânea é aquela que se dá no permanente confronto com a fronteira, seja ela qual for  um checkpoint, um aeroporto, um obstáculo na estrada –, atentando para o fato de que em um contexto de globalização intensa, no qual com frequência se fala em mobilidade e livre circulação, a experiência palestina de forçada fixidez não apenas permanece, mas se intensifica.

Não por acaso, o léxico tipicamente associado à internet e às redes, no contexto deste mundo intensamente globalizado, lança mão de uma série de metáforas geográficas (GRAHAM, 1998), constituindo hoje todo um (ciber)universo repleto de autoestradas informacionais, comunidades eletrônicas, cidades virtuais e ciberfronteiras. No contexto da Primavera Árabe, irromperam debates acerca do extraordinário potencial das redes sociais  embebidas, talvez, por certo determinismo tecnológico otimista , muitas vezes deixando em segundo plano as infraestruturas concretas, espacializadas e marcadas pelas especificidades geopolíticas nacionais, sobre as quais estavam erguidos os pontos nodais do “mundo árabe” online. Helga Tawil-Souri, documentarista palestina e pesquisadora da circulação das infraestruturas de tecnologia no Oriente Médio, enfatiza que as tecnologias de informação e comunicação (TICs) devem ser analisadas à luz das relações geopolíticas que as produzem e da distribuição espacial das redes, que são, elas mesmas, responsáveis pela produção do espaço (TAWIL-SOURI, 2011).

Centradas no debate acerca da disseminação das TICs, diversas análises sobre a Palestina contemporânea (Tawil-Souri, 2011; Zureik, 2016; Arouagh, 2011) buscaram questionar esse suposto processo global de reestruturação do tempo e do espaço, através do qual distâncias outrora intransponíveis poderiam ser superadas por meio de “soluções” tecnológicas – e, sendo assim, trazer para o debate quais de fato seriam as possibilidades de transposição disponíveis para os palestinos nos Territórios Ocupados, dentro de Israel e para os refugiados ao redor do mundo.

No contexto palestino-israelense, as contradições colocadas entre mobilidades e imobilidades dadas pela emergência de uma suposta “Era da Informação” são especialmente interessantes, não apenas pelo determinante aspecto do que as fronteiras (geográficas, simbólicas e virtuais) têm sobre a identidade palestina contemporânea, mas também pelo fato de que a Palestina hoje se vê diante de um Estado que é vanguarda em setores de tecnologia de ponta, implicando, na prática, uma experiência de ocupação colonial altamente tecnologizada, o Estado de Israel. A importância de incorporar fronteiras cibernéticas na etapa mais atual da presença israelense nos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs) (e, evidentemente, na Palestina Histórica) não passou despercebida para os arquitetos da Ocupação, resultando em um progressivo movimento de militarização do ciberespaço, marcado por intensa e esteticizada presença militar nas redes sociais (KUNTSMAN; STEIN, 2015), e pela ascensão de práticas de análise de Big Data, exemplificadas pelo recente fenômeno das “Prisões de Facebook” (NASIHF, 2017).

Unidade 8200 das Forças de Defesa Israelense (FDI) (Fonte: Unit 8200, HIMEL, M. Documentário, 2017)

Se a atuação das agências de inteligência e das forças militares de Israel no ciberespaço começou a se delinear com maior clareza por volta de 2010, consolidando o importante papel que a Unidade 8200 de ciberinteligência das FDI adquiria nas estratégias nacionais, as consequências diretas dessa proeminência sobre os palestinos sob Ocupação passaram a se tornar mais evidentes alguns anos mais tarde.

Nos últimos três anos, algumas organizações e ativistas palestinos têm chamado atenção para o desenvolvimento de algoritmo de policiamento preditivo especialmente dedicado a monitorar a atividade online de palestinos nos TPOs e dentro de Israel, programado para identificar e qualificar atividades suspeitas na rede. Segundo o Shin Bet, cerca de 250 ataques terroristas teriam sido previstos e evitados desde a incorporação da nova tecnologia.

De acordo com levantamento da 7amleh e da Addameer, estima-se que, desde outubro de 2015, cerca de 400 palestinos tenham sido submetidos a detenções administrativas “justificadas” por atuação e incitação em redes sociais. As acusações, entretanto, não fornecem evidências a respeito de qual postagem e/ou intervenção ocasionou a detenção, o que, por vezes, tem resultado em penas de prisão de até doze meses. Em 2015, tornou-se exemplar o caso de Tamara Abu Laban, palestina de 14 anos, que foi levada de sua casa em Jerusalém Oriental pelo crime de atualizar seu status de Facebook com as palavras “me perdoe”, em árabe. Os algoritmos arbitrários da Ocupação rapidamente identificaram em tal postagem a expressão de culpa de uma jovem prestes a cometer um ato violento de resistência, o que tornava seu texto uma evidente ameaça à segurança nacional. Tamara foi libertada sob a condição de que pagaria uma multa de 1,5 mil shekels e permaneceria em prisão domiciliar por cinco dias. Sua postagem foi deletada, e ela foi impedida a retornar às redes sociais, tendo tido seu perfil suspenso por tempo indeterminado. Estava aí, então, a nova fronteira erguida sobre a vida de Tamara, para além de todas aquelas já concretamente presentes ao seu redor, em Jerusalém Oriental.

Na mesma época, uma das hashtags mais populares nas redes palestinas no ano de 2015 dizia #forgiveme, em solidariedade ao episódio e à jovem detida. Hadi Alajouli, autora da hashtag, também palestina de Jerusalém, pouco tempo depois recebeu a mesma visita indesejada em sua casa, sendo detida sob acusação de “incitação à violência”. Os palestinos de Jerusalém vítimas das “Prisões de Facebook” vivenciam um agravante que leva ao limite as contradições da coexistência dos espaços virtual e concreto: muitas vezes, as condições de sua soltura incluem não apenas seu afastamento das redes, mas também seu permanente distanciamento da cidade.

O encontro entre as dimensões cibernéticas e as dimensões infraestruturais e territoriais da Ocupação produz casos como os de Tamara e Hadi, nos quais são interrompidos, ao mesmo tempo, o acesso virtual a uma comunidade e espaço online e, no limite, o acesso concreto à sua comunidade e espaços offline. São exemplos de expansão das fronteiras da intervenção israelense para as dimensões mais variadas do cotidiano palestino, promovendo uma nova frente de batalha que traz o cibercídio palestino (AROUAGH, 2011), a eliminação da presença no ciberespaço, para o primeiro plano.

No entanto, não se pode ignorar que o universo virtual tem representado, mesmo que obstruído e obstacularizado, caminhos, escapes e respiros para uma população para qual, muitas vezes, a tela de uma videochamada pode ser a única possibilidade de trocar olhares e palavras entre famílias e comunidades separadas pelo tempo, pelas distâncias e pelas fronteiras, tão determinantes para sua identidade comum. Seja participando via Skype de um grande evento de família, dedicando-se a um trabalho freelance pela internet ou compartilhando imagens, vídeos e experiências online, a adaptação do cotidiano em suas dinâmicas mais comuns e ordinárias, localizado nas especificidades deste dado contexto, pode muito ter a contribuir para a releitura criativa da geografia, do território e do futuro.

Uma vez que as fábulas da globalização permanecem privilegiando metáforas de transnacionalidade, mobilidade e desterritorialização as mesmas transpostas para aludir ao potencial revolucionário do ciberespaço e das novas tecnologias –, estas se tornam imperativas para considerações contemporâneas acerca das particularidades de populações cujas condições concretas de mobilidade estão indisponíveis.

Diante disso, é possível inferir que ocupação palestina de “territórios” virtuais, paralela à Ocupação sionista das terras e das redes , através de manifestações de sua (re)existência cotidiana. As relações vividas e reafirmadas através do espaço virtual fornecem pistas para uma nova forma de se pensar identidade e memória, cujo compartilhar e preservar pelos poucos dispositivos restantes pode aparecer como um elemento indispensável para a resistência contra um projeto histórico que tem em seu centro sua negação, isto é, de sua própria existência.

 


  1. 2010 marca o episódio do stuxnet, vírus desenvolvido para atacar as centrífugas de enriquecimento de urânio iranianas, considerado ato de ciberguerra. Desde 2010 não foram concluídas investigações a respeito da responsabilidade pelo ataque, no entanto a literatura a respeito do tema enfatiza a suspeita de envolvimento israelense, devido principalmente ao complexo de centrífugas idênticas localizado no deserto do Negev, no qual o stuxnet teria sido testado e aprimorado antes de ser lançado para seu destino final. Argumenta-se que o ataque foi responsável por atrasar o desenvolvimento do programa nuclear iraniano em, no mínimo, cinco anos. (Ver mais em: ZETTER, K. Countdown to Zero Day. 2014).
  2. Agência de Segurança de Israel

 

Para saber mais:

BIBLIOGRAFIA

AOURAGH, Miriyam. Palestine Online: Transnationalism, the Internet and the Reconstruction of Identity. London: I.B. Taurus, 2011.

GRAHAM, Stephen. The end of geography or the explosion of place? Conceptualizing space, place and information technology. Progress in Human Geography, v. 22, n.2, p. 165-185, 1998.

KUNTSMAN, Adi; STEIN, Rebecca L. Digital Militarism: Israel’s Occupation in the Social Media Age. Stanford: Stanford University Press, 2015.

NASIHF, Nadim. The Israeli algorithm criminalizing Palestinians for online dissent, Open Democracy. 04 out. 2017. Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/north-africa-west-asia/nadim-nashif-marwa-fatafta/israeli-algorithm-criminalizing-palestinians-for-o>.

TAWIL-SOURI, Helga. Hacking Palestine: A Digital Occupation. Al-Jazeera English Online. 9 nov. 2011

ZUREIK, Elia. Israel’s Colonial Project in Palestine: Brutal Pursuit. New York: Routledge, 2016.

Sobre a autora:

Júlia Tibiriçá Diegues Gomes é Bacharel em Relações Internacionais, pela PUC-SP e mestranda do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Estuda as intersecções entre tecnologia, política e colonialidade.

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