Em seu novo artigo, Ariel Pires de Almeida reacende a memória do século XX na esperança de que o XXI aprenda com ela e tome um rumo diferente

Por Ariel Pires de Almeida

Toda geração tem sua Alepo. Bagdá foi de 2003 a 2011; Sarajevo, de 1992 a 95; Beirute, de 1975 a 95. A Guerra do Iraque representou o princípio do fim de uma estrutura de poder laica no Crescente Fértil. A cruzada contra o presidente sírio Bashar al-Assad, por outro lado, foi colocada depois da queda do tunisiano Zine el-Abidine Ben Ali, do líbio Gaddafi e do egípcio Mubarak, a partir da chamada Primavera Árabe, em 2011. Washington acostumou-se em oferecer a cruz e a espada. Com Ronald Reagan, na década de 1980, consolidou-se a estratégia balcanizadora, baseada no amparo e armamento de grupos islâmicos em oposição ao governo satélite soviético no Afeganistão.

O tiro, já em princípio, nasce na culatra. A aventura americana no Afeganistão, aliada à histórica aliança com o wahhabismo saudita criou o personagem de Osama Bin Laden (1957-2011). Tão logo o inimigo número um do ocidente cai num canto do Paquistão, outros o substituem. A queda de Bagdá pariu o horror sem rosto, amparado pelos mesmos petrodólares que alimentaram a Al-Qaeda. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante surge das cinzas das ações combinadas das Doutrinas Bush e Obama no Oriente Próximo na última década.

O ano de 2017 será marcado pela memória. De 1917, 47, 67. Cem anos atrás, os Impérios Otomano e Russo se esfacelavam. O que foi feito de seus restos espalhou-se nos obituários pelo século. Naquele ano, redigia-se a Declaração de Balfour que legitimava a pretensão judaica européia por um entrave no Levante. Trinta anos depois, a Nakba.

O enfraquecimento de ambos impérios supranacionais é, em parte, consequência de seu próprio engrandecimento. Na virada do século, tanto um quanto outro, reviravam-se em lutas intestinas secularmente silenciadas. Os Romanov aproveitaram-se, ao longo do XIX, da ascensão dos eslavos do sul nos Bálcãs turcos, porta de entrada às águas quentes do Mediterrâneo. Entretanto, já na primeira década, era concedida voz a jovens turcos e sovietes, processo irreversível.

Em 1947, aniversário da Doutrina Truman e do Pacto de Varsóvia, nasce um novo equilíbrio de poder que se consolida nos próximos vinte anos. Aos americanos, Israel e Arábia Saudita. Aos soviéticos, a República Árabe Unida. No meio do caminho, Beirute, a “Paris do Oriente”.

O que se processou na pequena república do Líbano, a partir de 1967, é análogo ao ocorrido na Federação Socialista Iugoslava, vinte anos depois. Fuad Chehab (1902-1973), ao contrário de Josip Broz Tito (1892-1980), assistiu ao fracasso de seu projeto ainda vivo. O governo de Unidade Nacional, nascido do Pacto Nacional de 1943, ruiu em 1969. O frágil equilíbrio entre nações e credos, embasado numa política externa pendular entre Washington e Cairo e neutra em relação a Israel, não soube sustentar a diáspora palestina pós-1967.

Em seis dias, o sionismo esmagou o panarabismo irreversivelmente. Os derrotados eram os mesmos de 1947. Nos cinco anos subsequentes, a máscara cai. A insurreição palestina era também intestina ao mundo árabe. Na Jordânia, a derrota de 1970, o Setembro Negro. No Líbano, uma discreta vitória, o Acordo do Cairo, em 1969.

O Acordo orquestrado pelo presidente da RAU, Gamal Abdel Nasser (1918-1970), foi uma última tentativa em conter a guerra civil. Prescrevia um ganho territorial aos fedayen palestinos, com autoridade sobre os territórios e população. Acima de tudo, legitimava a luta armada palestina. A questão era que, para o governo central, o Acordo não previa legitimar ataques a Israel pelo território libanês, a não ser em coordenação com o exército nacional. Para a OLP, entretanto, o Estado não era confiável, portanto as ações teriam de ser tocadas à sua margem. Segundo o líder da OLP, Chafik el Hout, o Acordo do Cairo foi uma “tentativa de criar uma relação impossível entre os conceitos de Estado e Revolução”.

A insurreição palestina, legitimada nos princípios do Acordo, levou Beirute a tomar posição no cenário internacional. Da noite para o dia, o pequeno paraíso turístico montanhoso mediterrânico, lar de fenícios a maronitas, tornou-se beligerante no conflito árabe-israelense. Uma tragédia anunciada, o Líbano entrou quando a guerra já estava perdida.

Por trás do Pacto Nacional de 1943, que organizou num território cristãos, muçulmanos e drusos de diferentes etnias, subsistia uma questão de classe. De um lado, os cristãos falangistas, elite comercial milenar; de outro, muçulmanos pobres que teriam suas fileiras engrossadas com a vinda dos refugiados palestinos. À época, os países árabes apoiavam a luta palestina, desde que fora de seus territórios e sem o comprometimento de sua segurança interna. A estabilidade proporcionada pelo Acordo não perduraria.

Quatro acontecimentos marcariam o ano de 1970 irreversivelmente. Na Jordânia, em setembro, o rei Hussein fez eclodir brutal repressão aos fedayen. No fim do mês, Gamal Nasser sentou com lideranças jordanianas e palestinas no Cairo para assinar a paz. Faleceu no dia seguinte. Enquanto isso, na Síria, um golpe de estado empossou Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad, atual presidente, próximo aos soviéticos. No Líbano, o povo optou por se afastar do chehabianismo caduco nas eleições daquele ano e elegeu Suleiman Franijeh, com apoio da URSS, do novo governo sírio e da OLP.

Franijeh rompeu com o Pacto Nacional e se afastou da nova liderança egípcia, próxima a Chehab. O novo governo dissolveu o serviço de inteligência do exército e lançou oficiais a côrtes marciais, levando ao enfraquecimento do Estado e, portanto, de seu controle sobre a militância palestina. Em 1972, a OLP transfere seu quartel-general para o Líbano, enquanto a escalada de violência com Israel ascende vertiginosamente. Israel retalia com o assassinato de líderes palestinos ao redor do mundo e a invasão pela primeira vez – em muitas – do sul da “Suíça do Oriente”.

No ano seguinte, em maio, numa última tentativa de mantê-los sob controle do Estado, o exército libanês entra em conflito aberto com os fedayen. Utilizou-se de todas as armas, incluindo a força aérea. O resultado imediato de tal ataque desordenado foi a vitimação não apenas dos alvos primários, mas da própria população libanesa que apoiava a insurreição. Donos de lojas revidaram. Ambos os lados estavam pesadamente armados. O mundo árabe respondeu com um boicote econômico e turístico ao país por infligir a resistência palestina.

Franijeh já estava entre a cruz e a espada. Não poderia apoiar os fedayen, pois implicaria retaliação israelense imediata. A resposta à crise, entretanto veio apenas a agravá-la. Em Melcarte, antiga cidade fenícia, celebrou-se novamente a paz. O país já estava dividido entre pró e anti-palestinos, enquanto o novo acordo firmado assegurava mais armamentos ao Exército de Libertação da Palestina. Em abril, morria Fuad Chehab, tutor da Unidade Nacional já perdida.

Não é à toa que o mundo pouca atenção prestou ao conflito intestino libanês em seus primeiros movimentos. Por boa parte da década, seus olhos se voltavam a Hanói, Pequim, Teerã, Tel Aviv, mas, especialmente, Viena. A capital austríaca foi a escolhida a sediar a Organização dos Países Exportadores do Petróleo (OPEP) que, no fim de 1973, fez do mundo ocidental seu refém.

Alongar-se nos pormenores que induziram ao conflito aberto no Líbano, na primavera de 1975, parece-nos hoje tão fútil quanto apontar aquele que desferiu o primeiro golpe numa briga de bar. Passados cinco anos de desastre sírio, treze de ruínas iraquianas e quinze de fracassos afegãos; não resta tanto a contemporizar, seja em Beirute, Bagdá, Cabul ou Alepo. O relato é recente, mas a história, antiga.

Nas próximas décadas, Israel forçou a paz com seus vizinhos em troca da terra conquistada em 1967. A estratégia dos trabalhistas, desenhada pelo primeiro-ministro Levi Eshkol (1895-1969), foi levada à cabo, a princípio pelos conservadores, em 1979, no Egito.

O desfecho libanês, eternizado na sangrenta derrota palestina em Sabra e Chatila, em 1982, entretanto, abriu uma janela ao diálogo. Uma nova rodada de negociações inauguraram o primeiro governo Clinton. Oslo 1 e Oslo 2, entre 1993 e 1995; Arava, Jordânia, em 1994. No ano seguinte, era firmada a paz também no Líbano. A OLP ganharia autoridade.

Um otimismo vazio e infante percorreria a última década do século mais sangrento da história. Não perduraria os primeiros 9 meses do novo ciclo. Dezesseis anos depois, aquele que veio a setembro de 2001 aproximava-se da maioridade. Quando mal tinha sete, sentiu os primeiros abalos sísmicos. Aos dez, assistiu a um levante árabe. Até os quinze, ouviu de Alepo, Ancara, Atenas. Apreendeu o terror, mas não aprendeu sua memória.

O legado do século XX, abraçado com júbilo em seus derradeiros anos é deveras o fim da História. Em meio à ascensão extremista tanto no centro quanto nas periferias do sistema, resta a este jovem tomar um lado nas contendas. E cabe-nos lembrar-lhe de sempre lembrar.

Sobre o autor

Ariel Pires de Almeida é mestre em História Iugoslava pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Belgrado.
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