Neste ano, a 10ª edição do Festival Islâmico aconteceu entre os dias 16 e 19 de maio, coincidindo com o Ramadan, o nono mês do calendário islâmico.

Festival Islâmico | Liza Dumovich

No alto de uma colina no Parque Natural do Vale do Guadiana, na região do Alentejo, em Portugal, se situa uma vila conhecida por retomar e celebrar a sua herança moura e, de uma forma mais geral, mediterrânea. Desde 2001, a Câmara Municipal de Mértola juntamente com entidades parceiras locais, nacionais e internacionais promove o Festival Islâmico, um evento bienal que reúne exposições, oficinas, conferências, concertos e a recriação de um suq, o tradicional mercado árabe, pelas ruas íngremes e sinuosas do seu centro histórico. 

Neste ano, a 10ª edição do Festival aconteceu entre os dias 16 e 19 de maio, coincidindo com o Ramadan, o nono mês do calendário islâmico, quando os fiéis praticam o jejum total desde a aurora até o pôr do sol. Somando cerca de 3 mil habitantes, a vila de Mértola pode receber cerca de 50 mil visitantes durante os quatro dias de evento, segundo informações oficiais. 

A paisagem sonora é a primeira a denunciar a presença árabe nas ruas de Mértola, por onde os pedestres sobem ao som de Amr Diab, famoso cantor egípcio da música pop árabe. Os alto-falantes, animados pela voz de Diab, orientam o caminho dos visitantes até a entrada do centro histórico, adornada por uma reprodução de passagem em arco ogival, forma característica da arquitetura islâmica. 

Festival Islâmico | A entrada para o suq em arco ogival. Foto de Liza Dumovich.

Ao passar pelo arco, os visitantes entram num espaço vivamente colorido, coberto por panos e ladeado por barracas onde se vendem diversos tipos de objeto e artefatos culturais – desde temperos e frutos secos até sapatos e roupas – que são rapidamente associados ao Norte da África, mas também a Portugal e mesmo à Índia. Potes de mel de produção local são vendidos ao lado de peças de vestuário em tecidos indianos e de bolsas em couro marroquino. Numa das barracas, o casal de expositores conversa na língua árabe; ao lado, um homem faz a oração em cima de um tapete islâmico. No estande que vende shawarma, o tradicional sanduíche de carne (de carneiro, boi ou frango), salada e molho de tahine no pão pita, Aziz e seu ajudante servem um grupo de estudantes locais. Aziz mora em Faro, uma cidade do Algarve, no sul de Portugal, onde há uma pequena comunidade muçulmana. Poucos metros adiante, Layla recebe os transeuntes com sua simpatia e uma miríade de artigos de vestuário e calçados marroquinos. Como Aziz, Layla não mora em Mértola, aonde vem apenas para participar do Festival. Ela vive em Albufeiras, a alguns quilômetros dali, há 15 anos

Festival Islâmico | Uma das ruas principais do suq temporário do Festival de Mértola. Foto de Liza Dumovich.

Festival Islâmico | Uma barraca de diversos artigos que fazem referência ao Norte da África. Foto de Liza Dumovich.

Muito do que hoje é Portugal esteve sob domínio muçulmano entre os séculos VIII e XIII, em diferentes proporções e sob diversas dinastias, sob o nome de Gharb al-Andaluz (ocidente de al-Andaluz). Mértola, então Martulah, foi conquistada pelo rei de Portugal Dom Sancho II em 1238, numa das campanhas do que se chamou de Reconquista Cristã da Península Ibérica. Foi nesse mesmo ano que a mesquita de Martulah foi transformada na Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, também conhecida como Igreja Matriz de Mértola. Segundo narrativas oficiais, esse templo cristão é a mais preservada testemunha da arquitetura islâmica medieval no país. Mas como um templo religioso pode ser, ao mesmo tempo, uma igreja católica e um exemplar de uma mesquita do século XII?

Festival Islâmico | A Igreja Matriz de Mértola por fora, com sua torre do sino que fora antes um minarete de onde era feita a chamada para a oração, o adhan Foto de Liza Dumovich.

Festival Islâmico | Porta em arco que leva ao que hoje é a sacristia. Foto de Liza Dumovich.

 Ao adentrar o edifício branco com torres de pontas cônicas, os visitantes se veem num salão amplo e geométrico, sem a tradicional divisão entre nave e altar das igrejas católicas. Mais ainda, eles deparam uma cavidade na parede atrás de uma escultura de Nossa Senhora: ali está preservado o antigo mihrab, que marca a qibla, direção de Meca, para onde os muçulmanos se voltam ao fazer as cinco orações diárias. A cavidade do mihrab amplia o som das palavras sagradas pronunciadas pelo imam, aquele que lidera o ritual da oração islâmica. 

Festival Islâmico | O mihrab, concavidade na parede que marca a direção de Meca, a qibla, atrás da escultura de Nossa Senhora da Anunciação. Foto de Liza Dumovich.

A igreja é parte do complexo do Castelo de Mértola, uma edificação cujos primeiros registros remontam ao século IX e que teve seu auge entre os séculos X e XI, período no qual foi construída a cidadela fortificada pelos muçulmanos, ou alcáçova (al-qasabah, em árabe), . No ponto mais alto da colina, as duas torres do Castelo estão guardadas por Ibn Qasi, líder político sufi e senhor da Taifa de Mértola de 1144 a 1147, imortalizado num monumento em bronze. Conta a história que Ibn Qasi foi um aliado e amigo de Dom Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal. Ao redor das torres, há um sítio arqueológico que revela diversas camadas de civilizações, entre as quais estão vestígios de vida social que vão do Neolítico ao período da Reconquista Cristã, passando pela presença romana e islâmica. 

Festival Islâmico | Monumento a Ibn Qasi, senhor de Mértola de 1144 a 1147. Foto de Liza Dumovich.

No primeiro dia do Festival, uma turma do ensino fundamental de uma escola local aprendia sobre as suas heranças culturais nacionais, assim como a história de Mértola, vestidos com trajes “típicos” dos árabes do Norte da África. A antropóloga Luisa, sob a coordenação do Campo Arqueológico de Mértola, uma associação cultural e científica, ensinava às crianças sobre algumas das práticas culturais e trocas comerciais entre os árabes da Mértola do século XII e o outro lado do mediterrâneo. Em seguida, os estudantes elencaram alguns exemplos de palavras da língua portuguesa que tinham sua origem na língua árabe: “A maioria das palavras que começam com ‘al’, lembram?”, perguntou Luisa. Sua audiência, hesitante, porém animada, respondeu: “Algarve, almofada, alcáçova…” . Após a aula, que ocorreu sobre almofadas espalhadas sobre um grande tapete estendido ao largo das ruínas, as crianças pintaram réplicas de moedas medievais em gesso como parte das atividades relacionadas ao evento. “Eles vão fazer atividades relacionadas ao tema do Festival em sala de aula durante os próximos meses”, contou Luisa.

 Inicialmente de motivações científicas e culturais, e fundamentado nas pesquisas do Campo Arqueológico de Mértola, atualmente, o Festival Islâmico assume um forte caráter turístico com impactos diretos na economia local. Essa configuração se deve ao crescimento do evento, mas também a um projeto de afirmação identitária de Mértola como herdeira de um passado multicultural propiciado pela sua posição estratégica nas relações mercantis com o antigo mundo mediterrâneo, além de referência arqueológica nos estudos sobre o período islâmico na região. Por mais paradoxal que possa parecer, o conceito de herança cultural está mais relacionado ao presente do que ao passado, pois reproduz e legitima relações sociais e políticas atuais ao conectar símbolos de poder, processos históricos e o presente. A reconstrução do passado de Mértola se insere no contexto mais amplo de um projeto nacional de produção de uma história de diversidade, coexistência e cosmopolitismo português.  

Festival Islâmico | Porta azul com motivos decorativos dentro do suq, com uma clara referência a cidades do mediterrâneo muçulmano, como Chefchaouen, no norte do Marrocos. Foto de Liza Dumovich.

Há receios de que a forma marcadamente turística e, consequentemente, mais comercial que o Festival Islâmico de Mértola vem tomando possa tingir de cores orientalistas os esforços de afirmação de continuidades entre as tradições culturais andaluz e portuguesa. Apesar de os resultados dos estudos arqueológicos desafiarem o mito do mouro invasor e violento, a configuração atual do Festival pode vir a reproduzir estereótipos sobre o islã e o que se entende por “cultura árabe”. Uma “folclorização” da herança islâmica reforçaria o problema da alteridade em relação aos muçulmanos e aos árabes, como alertou Maria Cardeira da Silva, antropóloga, professora da Universidade NOVA de Lisboa e uma das conferencistas dessa edição do Festival, na matéria de Marta Vidal para o Middle East Eye . Mértola corre o risco de perder de vista o objetivo principal do evento, que é mostrar as continuidades entre os dois lados do Mediterrâneo, produzidas pelas pessoas e suas relações ao longo dos séculos, e revelar aos seus visitantes o que o conhecimento sobre o passado nos afirma: que a história do “outro” e a nossa própria história, mais do que simplesmente conectadas, são uma só. 

 

Para saber mais:

Site oficial do Festival Islâmico 2019:

https://www.festivalislamicodemertola.com/

Sobre a autora:

Liza Dumovich é Antropóloga e Coeditora da Revista Diáspora.

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