Diego Gebara entrevista Dima Mikhayel Matta, a professora universitária por trás do renascimento da contação de histórias na capital libanesa

Diego Gebara

Falta pouco para as 19h de uma ensolarada quinta-feira em Beirute, e grupos de três ou quatro jovens sobem as escadarias que levam ao bairro de Ashrafieh, em direção ao Museu Sursock. O casarão de 1912 abriga exposições de arte contemporânea há décadas, mas naquela noite nenhum dos presentes adentrou em suas galerias. Todos se aglomeravam no pátio, em volta do pedestal que dava suporte a um microfone. Quinhentas pessoas aguardavam o início de mais um encontro promovido pelo

Cliffhangers, iniciativa que desde 2014 promove eventos temáticos nos quais habitantes da capital libanesa são convocados a narrar histórias para um público cada vez maior.

Pouco antes de apresentar o primeiro contador de histórias da noite, a fundadora do projeto, Dima Mikhayel Matta, ouviu de um funcionário do museu que nunca tantas pessoas haviam visitado o local ao mesmo tempo.  

Dima Mikhayel Matta nasceu em Beirute. Escritora, atriz e professora universitária, ela foi para os Estados Unidos fazer um mestrado seis anos atrás, mas voltou ao Líbano após o fim do curso, diferentemente de muitos jovens que decidem deixar o país. “Minha base é Beirute, o que surpreende muitas pessoas. Me perguntam por que eu voltei e por que eu não fui embora de vez. É normal. Viver em Beirute é uma escolha que se faz todo dia. Você escolhe ficar, ninguém está aqui por acaso”.

Nos Estados Unidos, Dima teve o primeiro contato com eventos de narração de histórias, que a faziam lembrar da importância das aventuras que ouvia de seus pais quando era criança.

“Eu cresci ouvindo histórias. Meus pais, principalmente meu pai, contavam histórias sobre a Guerra Civil, sobre a sua infância, eu as ouvia todas as noites”. 

Com a ajuda de uma amiga norte-americana, Dima fundou o Cliffhangers em 2014, com o objetivo de reunir pessoas dispostas a ouvir narrações em eventos intimistas, que no início contavam com dez ou 20 pessoas em cafés e bares da cidade. “Basicamente, eu perguntava para amigos artistas se eles gostariam de contar uma história. E as pessoas começaram a aparecer, gostar e perguntar quando seria a próxima vez. E foi assim que tudo aconteceu”.

A cada nova edição, o respeito e a tolerância, valores pregados pela iniciativa, foram transformando os encontros em um verdadeiro refúgio para parte da juventude local que carece de espaços seguros e livres de julgamentos. Por isso, há quatro meses, Dima foi convidada a organizar uma noite de contação de histórias durante a primeira edição da Beirut Pride, a semana do orgulho LGBTQ da capital libanesa. “Quatrocentas pessoas compareceram nessa noite. Eu fiquei uma semana sem acreditar. ‘Isso aconteceu na minha vida’. Quando voltei dos Estados Unidos, quatro anos atrás, eu nunca pensaria que algo assim fosse possível.

A única maneira de ver pessoas gays se encontrando é em festas, quando todos estão se divertindo, e não ajudando uns aos outros. As pessoas levantavam as mãos, se aproximavam e dividam histórias sobre como saíram do armário. Todos estavam saindo do armário! Foi bonito, a coisa mais bonita.

Foi a minha noite de contação de histórias preferidas, de longe”.

A repercussão da noite do Beirut Pride aumentou a responsabilidade de Dima. Ela diz que felizmente nunca teve problemas com a censura, já que os eventos são gratuitos e não geram lucros para os organizadores. Por isso, não é necessário pedir nenhum tipo de autorização para os escritórios da Segurança Geral, órgão que costuma vetar produções artísticas que apresentem conteúdos considerados “delicados”. Por outro lado, o grande número de pessoas que tem comparecido aos eventos desde maio tornou tudo menos intimista. “Muitas pessoas me perguntam se eu faria uma noite como a do Sursock novamente, e eu digo que não. Eu acho que foi uma bela noite, mas contar histórias é algo feito para ser íntimo, e quando 500 pessoas comparecem em um espaço aberto essa intimidade é perdida”. Além da preocupação com a dimensão que os encontros tomaram, Dima também revela que a língua árabe tem se tornado cada vez mais presente, acompanhando a adesão do público local.

“De repente virou quase um ato político fazer o evento em árabe. É uma afirmação, você não vê ninguém acomodar quem não fala inglês nos Estados Unidos”. 

Nos planos futuros do Cliffhangers, estão um podcast e uma edição em um dos prédios mais marcantes da região central da cidade, o Beit Beirut. Com o tema “Curando a cidade”, Dima afirma que a futura noite de contação de histórias pode ser um importante passo em busca da memória e de uma nova forma de lidar com o passado. “O Beit Beirut é um dos poucos prédios restantes que testemunhou a Guerra Civil, então é muito importante, porque no Líbano somos muito bons em esquecer, somos ótimos em apagar e fingir que está tudo bem. Eu odeio isso, é uma das razões pela qual ainda estamos em conflito, pela qual repetimos os mesmos erros. Na escola não aprendemos sobre a Guerra Civil. Esse prédio resiste como um memorial público, e é muito importante contar histórias lá para relembrar a história da cidade”.

Desde 2015, diversos movimentos marcados pela alta participação de jovens libaneses têm ganhado as ruas para fazer frente aos políticos que se perpetuam no poder em meio a muita corrupção e pouca preocupação com a qualidade de vida da população. Para Dima, o Cliffhangers é a sua forma de contribuir ativamente para uma sociedade que se expresse cada vez mais. “Os jovens estão começando a perceber que precisamos tomar o país de volta. Nossas vozes devem ser ouvidas, precisamos reivindicar o que é nosso, como espaços públicos, e precisamos lutar contra a corrupção.

É difícil ser otimista em Beirute, mas a mudança está acontecendo, só que de forma lenta e sutil, é difícil perceber e muito mais fácil simplesmente desistir”.

Com eventos marcados para os próximos meses e angariando cada vez mais adeptos de seus valores, o Cliffhangers mantém o otimismo ao dar a palavra aos moradores de uma cidade que guarda muitas histórias para contar. 

Sobre o autor

Diego Gebara é descendente de sírios e libaneses. Jornalista formado pela ECO-UFRJ, trabalhou com o Universal Channel, SyFy e Al Jazeera English.
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