Revista Diáspora
Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

Helena Manfrinato evidencia questões como o direito de retorno, refúgio, luta política e solidariedade na ocupação Leila Khaled, de São Paulo.

Helena Manfrinato

As formas de apoio de não palestinos à “causa palestina” se conectam a noções de justiça, direitos humanos, solidariedade internacional e de classe, mas também a posicionamentos ético-morais, movidos pela compaixão diante do sofrimento. Podem se manifestar de modo mais ou menos organizado, no âmbito da luta pela garantia de direitos, denúncia e visibilização das injustiças cometidas contra a população palestina, ou mesmo projetos, parcerias e relatórios, entre outros. A “causa” figura nas agendas internacionais de movimentos sociais e partidos políticos, mas também ONGs, em coletivos e movimentos pró-palestina. Neste artigo, discutirei a abordagem de dois movimentos de esquerda em relação a isso, mais especificamente em uma ocupação urbana em que parte dos moradores é composta de refugiados palestinos da Guerra da Síria.

Refúgio e moradia: a ocupação Leila Khaled

Em meados de 2015, uma parceria foi firmada entre o movimento de moradia Terra Livre e o Movimento Palestina para Tod@s (Mop@t), de apoio à causa palestina no Brasil. Através da mediação do Mop@t, famílias palestinas refugiadas do conflito sírio passaram a viver em uma das ocupações do Terra Livre, localizada no bairro da Liberdade, em São Paulo. Em outubro do mesmo ano, realizaram o lançamento público da ocupação, como um modo de angariar apoio político, doações e assim visibilizar a presença local dos palestinos.

[…] Temos aqui muitos jovens refugiados palestinos. Eles nasceram na Síria, mas não possuem os direitos plenos de um cidadão sírio. Eles são refugiados palestinos dentro da Síria, são apátridas e querem voltar, querem que seja efetivado o direito de retorno para Palestina histórica, que é consagrado na resolução 194 da ONU, então, o direito internacional prevê isso, mas a questão é totalmente política. Eles não podem voltar. Pra isso, Israel precisa se tornar uma democracia de verdade, acolher quaisquer cidadãos, independente da origem étnica, optar por uma nova forma de se viver, de compartilhar o território, sem discriminação étnica ou religiosa. É isso que o Mop@t propõe, ele quer visibilizar e solidarizar essa questão.”

Essa fala é de um militante do Mop@t, em uma entrevista concedida durante o evento, chamado de Jornadas de Yarmouk. Ele traz à tona a longa e específica experiência de apatridia dos refugiados palestinos. A escolha por situar a presença dos jovens refugiados nesses termos e não, por exemplo, aludindo ao conflito sírio, desloca as razões imediatas de sua chegada ao Brasil: indica que essas pessoas vieram da Síria não apenas por causa dos riscos impostos pela guerra, mas por terem nascido lá, em primeiro lugar. Fala da sua impossibilidade, de seus pais, os refugiados de primeirageração, de voltarem para a Palestina, ao passo que se mantêm como refugiados dentro do país, sendo-lhes vedado o acesso à cidadania. Isso é particularmente sensível para as famílias que nasceram e viveram nos campos de refugiados palestinos, como é o caso na ocupação. A maior parte deles veio de Sbeinah, um campo situado nos arredores de Damasco, administrado pela UNRWA. A condição do refúgio, no entanto, deveria ser dissolvida por um princípio criado pelos mesmos mecanismos de governança internacional dessa população, prescrita na Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU, do direito ao retorno às suas terras e propriedades originais

O acesso à cidadania no Brasil é particularmente sensível para as famílias que nasceram e viveram nos campos de refugiados palestinos, como é o caso na ocupação Leila Khaled.

A declaração, nesse sentido, é uma denúncia da falta de efetivação desse direito por um bloqueio político da potência ocupante, cujo efeito é a própria continuidade dos palestinos como refugiados nos campos. Essa é a ideia que norteia as articulações do Mop@t neste momento: a reivindicação do direito de retorno e a visibilização dos palestinos como refugiados permanentes na Síria. O movimento operava por aliança com outros movimentos e agendas de esquerda, articulando esta e outras, a partir da chave da solidariedade internacional. Essa noção aparece na narrativa da entrevista: solidariedade é algo além do “mero acolhimento” dos refugiados, implica o engajamento e conscientização política sobre as condições do refúgio palestino.

Solidariedade é algo além do “mero acolhimento” dos refugiados: implica o engajamento e conscientização política sobre as condições do refúgio palestino.

O sentido da noção, no entanto, não é unívoco: é um constructo da comunidade internacional, que se liga a mobilizações de apoio ao povo palestino e denúncia internacional das injustiças cometidas contra eles. Ao mesmo tempo, diz respeito à solidariedade de classe supranacional, expressada na ideia do “internacionalismo”, uma noção presente nos movimentos de esquerda, historicamente construída pelas articulações globais das classes trabalhadoras europeias das mais diversas orientações políticas. Uma segunda noção que se desdobra é a chamada “solidariedade” entre os povos que lutam contra o imperialismo. Os debates travados pela III Internacional no primeiro quarto do século XX definiram as bases do que seria a luta anti-imperialista, incluindo a defesa da autodeterminação nacional. A busca por independência das chamadas “colônias orientais” contra o imperialismo foi considerada, não sem controvérsia, como uma forma de luta legítima contra o capitalismo, e compreendida potencialmente como uma abertura para a revolução socialista.

A tradução das dificuldades, sofrimentos e injustiças cometidas contra os palestinos em causa internacional via solidariedade é um acontecimento observado em muitos países. Trabalhos como o de Jardim, Baeza e Montenegro (SCHIOCCHET, 2015) evidenciam a composição e codificação de uma militância pró-palestina solidária, com a formação de redes de organizações e coalizões políticas locais, seculares e religiosas no Brasil, Chile e Argentina. Articulações com a sociedade civil, movimentos e partidos de esquerda na difusão de informações, celebração de datas históricas importantes e apoios públicos podem ser observados em diversos contextos de militância internacional, palestina e não palestina. O arranjo político e cultural da ocupação Leila Khaled deslocou o repertório político que comumente marca uma militância de visibilização da questão palestina.  

Voltando à narrativa acima, afirma-se a aliança entre o direito de retorno e o direito de moradia. Essa conexão parcial via “internacionalismo” almeja “construir pontes entre a questão palestina, a solidariedade e direito à cidade”. A potencialidade dessa aliança estaria em fazer aproximações parciais entre o direito de um povo ao seu território e à moradia digna e o acesso democrático à cidade para população economicamente excluída. O movimento afirmou publicamente, em inúmeras entrevistas, que a chamada feita às famílias para morar na ocupação foi feita após estas terem sido encontradas vivendo em pensões no Brás, Guarulhos e outras localidades pagando aluguéis com que não poderiam arcar em longo prazo. Manter as famílias unidas facilitaria, por um lado, a situação do aluguel e articulação de trabalho e doações, e, por outro, haveria fortalecimento político.

Direito de um povo ao seu território, à moradia digna e acesso democrático à cidade para população economicamente excluída foram elementos fundamentais na idealização da ocupação Leilah Khaled. Manter as famílias unidas facilitaria a articulação de trabalho e doações, e haveria fortalecimento político.

Helena Manfrinato evidencia questões como o direito de retorno, refúgio, luta política e solidariedade na ocupação Leila Khaled, de São Paulo.
Foto: Samara Takashiro/Autonomia Literária.

Nos primeiros meses, a ocupação tornou-se um acontecimento político: militantes de partidos e movimentos sociais de campo e cidade, sindicalistas, coletivos anarquistas, grupos de teatro engajados e mídias independentes: todos passaram por ali, para conhecer a experiência ou se engajar de alguma maneira. Embaixadores do PKK curdo, ativistas da Índia, Europa e da América latina visitaram o prédio para conhecer seus funcionamentos e diretrizes políticas. A originalidade do arranjo político, aliada a uma conjuntura muito favorável de visibilidade do refúgio do conflito sírio, lançou luz sobre o tema dos refugiados palestinos, e impactou positivamente o trabalho dos movimentos de moradia.

Fundado em 2008 de um racha da corrente do PSOL “Terra, Trabalho e Liberdade”, o Terra Livre tem ocupações no campo e na cidade. É um movimento político autonomista, pautado pela autogestão, descentralização do poder e colaboração em rede. Seus quadros são formados por militantes do PSOL, ex-militantes do PT, mas também por membros de organizações anarquistas e antifascistas, que veem nas ocupações uma ação direta de enfrentamento das desigualdades instituídas pelas relações sociais e econômicas da cidade.

A aproximação do Terra Livre com o Mop@t deu-se através de colegas de militância do PSOL e da participação de ambos os movimentos no Comitê Popular da Copa, uma frente formada por múltiplos movimentos sociais de esquerda em razão dos impactos políticos, sociais e econômicos do megaevento esportivo. O Mop@t, em especial, pautou a compra de equipamentos militares israelenses pelo governo brasileiro, além de apoiar as principais agendas do comitê, uma linha de atuação que vinha desenvolvendo há anos. As ocupações no Centro de São Paulo tornaram-se uma prerrogativa dos movimentos de moradia a partir dos anos 1990, por concentrar equipamentos urbanos, mais oportunidades de trabalho, facilidade de acesso ao transporte público e circulação na cidade.

O nome da ocupação é uma homenagem à Leila Khaled, guerrilheira palestina da FPLP que ficou famosa nos anos 70 por conta de algumas operações durante o Setembro Negro. O nome foi sugerido por uma das militantes e advogadas do movimento, durante a assembleia geral de fundação, justificando a escolha pela luta histórica da guerrilheira. Como é comum nas ocupações do Terra Livre, escolhem-se nomes de mulheres notáveis nas lutas contra opressões e limitações em suas sociedades, a exemplo da ocupação Maria Carolina de Jesus, em Pinheiros. Opta-se pela homenagem a mulheres por serem historicamente tratadas como “menores” em relação ao reconhecimento de outras figuras masculinas revolucionárias.


Holofotes sobre a ocupação e impasses da solidariedade

O dia a dia da ocupação, no entanto, mostrou-se desafiador diante das complexas dinâmicas de autoconstrução coletiva, tradução cultural e política entre os movimentos e moradores. A constante procura de estudantes, jornalistas, doadores e voluntários contribuiu para acentuar essa turbulência, sobretudo por se tratar de uma atenção seletiva. As famílias brasileiras passaram a se queixar de que não estavam sendo assistidas da mesma maneira que as palestinas, argumentando que também precisavam de suporte solidário. Por outro lado, o enquadramento midiático dos refugiados como vulneráveis, nos moldes da cobertura internacional do conflito sírio, incomodava os palestinos. “Todos acham que os palestinos são coitadinhos”, disse-me Ammar. “Sempre perguntam a mesma coisa, se viemos para o Brasil pelo mar, se perdemos pessoas na guerra”. Os sinais de desgaste se acentuaram conforme as demandas externas sufocavam o tempo dos militantes e o espaço da construção interna da ocupação. Os coordenadores do Terra Livre manifestaram sua preocupação com a dificuldade de construir relação entre os moradores árabes e brasileiros, bem como um sentido de coletividade política no prédio. Nem todas as famílias e indivíduos que vivem numa ocupação urbana estão diretamente engajados na luta por moradia, sendo função do movimento sensibilizá-los para a “causa”.

A visibilidade da ocupação Leila Khaled e sua proposta política foi extremamente prolífica para as articulações das redes de ativismo de São Paulo, tanto diretamente, como é o caso do Terra Livre e do Mop@t, quanto indiretamente. Mesmo após o afastamento dos dois movimentos, a coordenação do prédio chegou a acolher famílias de refugiados árabes, por meio da mediação de organizações religiosas muçulmanas. Do mesmo modo, a cobertura humanitária da ocupação Leila Khaled, ainda que se desviasse da politização almejada inicialmente e causasse tensões internas, proporcionou uma visibilidade positiva para o prédio, e, portanto, garantiu certa proteção para os moradores. Ao mesmo tempo, as especificidades culturais e repertórios políticos dos palestinos não cabiam ou eram compatíveis com códigos e socialidades dos movimentos, ou dos outros moradores, resultando em problemas de tradução e convivência intercultural.

Ainda que especificidades culturais e repertórios políticos nem sempre fossem compatíveis com códigos e socialidades de palestinos e outros moradores, a visibilidade da ocupação Leila Khaled e sua proposta política foi extremamente prolífica para as articulações das redes de ativismo de São Paulo.

Para concluir, observei que por meio do uso de noções como a “questão palestina”, “solidariedade internacional”, “direito de retorno”, “luta de classes”, entre outras, esses movimentos construíram engajamentos e promoveram ações éticas em torno das famílias palestinas. Essas noções, próprias aos seus modos de pensamento e ação política, existem ou são produzidas em diálogo com outras ferramentas, como o feminismo, o pós-colonialismo, o socialismo e o antirracismo, que se traduzem em coalizões solidárias de pleitos de justiça. Quando operam em conjunto, parecem produzir a percepção de que os refugiados palestinos são aliados naturais de grupos oprimidos, sendo enquadrados por parâmetros políticos e estéticos da esquerda.

Toda a narrativa de sensibilização construída nos primeiros meses da ocupação foi feita no sentido de historicizar e politizar o refúgio palestino, a guerra da Síria, as ocupações urbanas e o sofrimento das populações vulnerabilizadas pelo conflito e pobreza. Essa não é uma particularidade desses movimentos, mas uma tendência geral nos coletivos, movimentos e partidos de esquerda, não apenas naqueles diretamente envolvidos com essa agenda. Por meio do escrutínio dos processos que vitimam populações no mundo, estabelecem narrativas denuncistas e críticas da violência perpetrada por certas lógicas de poder operadas por governos e corporações, entre outros, através dos quais se constroem as agendas políticas específicas. Por vezes, relacionam-se a partir de seus próprios critérios e soluções políticas, ignorando a experiência, expectativas e visões particulares dos sujeitos dessas lutas, reforçando estereótipos orientalistas. Por um lado, as dificuldades de tradução e construção coletiva minaram certas potencialidades políticas do prédio, mas, por outro, criaram e estenderam relações, por vezes entre atores inusitados, como mesquitas e movimentos de moradia.


  1. Minha inserção na ocupação deu-se como militante, à época, do Movimento Palestina para Tod@s.
  2. O nome é uma referência ao campo de refugiados palestino na Síria, mas também ao documentário The Shebabs of Yarmouk, transmitido no evento. Link do trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Mqrt1gDILzk
  3. A UNRWA foi criada em 1948, após a expulsão de quase um milhão de palestinos de suas casas e territórios originais. Foi estabelecida por meio da Resolução 302 (IV), de 8 de dezembro de 1949, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os serviços da UNRWA incluem educação, cuidados de saúde, assistência e serviços sociais, melhoria dos campos e infraestrutura, microfinanças e assistência emergencial a cinco milhões de refugiados da Palestina, inclusive em tempos de conflito armado. Fonte: http://unrwa.org.br/a_quem_ajudamos/
  4. Organização internacional que uniu países comunistas no século XX.
  5. A entrevista, na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=u39HjYy28iM
  6. Como por exemplo, nesta daqui: AMENDOLA, Gilberto. Cozinha sem fronteiras. Refugiados palestinos fazem sucesso em restaurante. O Estado de S.Paulo. 18 jun. 2016. Disponível em:< https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,cozinha-sem-fronteiras-refugiados-palestinos-fazem-sucesso-em-restaurante,10000057922>. Acesso em: 12 br. 2019.
  7. O nome do meu interlocutor foi substituído para proteger seu anonimato.

Para saber mais:

BIBLIOGRAFIA

SCHIOCCHET, Leonardo (Org.). Entre o Velho e o Novo Mundo: a diáspora palestina desde o Oriente Médio à América Latina. Lisboa: Chiado Editora, 2015. 

Sobre a autora:

Helena de Morais Manfrinato Othman é doutoranda no Programa de Antropologia Social da Universidade de São Paulo e ativista da causa palestina na ONG Rabet.

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