Revista Diáspora
Este artigo foi escrito por um colaborador convidado e reflete apenas as visões do autor.

Arturo Hartmann, jornalista, pesquisador e documentarista, situa fundamentalmente os Acordos de Paz de Oslo em um processo de cessão de responsabilidades e invisibilização de direitos palestinos que permanece até a atualidade

Arturo Hartmann

Em 13 de setembro deste ano, o “processo de paz” entre palestinos e israelenses, conhecido como os “Acordos de Oslo”, completou 25 anos. Agora que olhamos com certa distância para o caminho que ele desenhou, observamos o legado consolidado de sua construção: um novo mecanismo de controle israelense sobre o território e população, agora com a participação internacional, e o gradual apagamento dos direitos conectados à questão da Palestina.

Em linhas gerais, o processo tinha dois conjuntos que deveriam se complementar. Um era o seu “espírito”, o legado da história que o envolvia, materializado em um consenso de leis e práticas internacionais, como resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU, regras comuns de engajamento e reciprocidade, envolvimento regional e internacional e reconhecimento de leis de direitos humanos e internacional (NABULSI, 2004, p. 221).

Este era traduzido em uma soma de questões centrais. A primeira questão era o próprio modo de existência das duas comunidades nacionais, em alguma fórmula que acomodasse o grupo nativo palestino junto ao israelense colonizador. A mais consagrada é aquela que envisionava a partição do território, com os Estados de Palestina e Israel, o que implicava a definição de fronteiras e retirada dos assentamentos. A segunda, o status da cidade de Jerusalém, uma consequência da primeira, com sua divisão de modo similar, em seus lados oriental (palestino) e ocidental (israelense). Já a terceira, retorno e compensação aos palestinos que foram e ainda são feitos refugiados desde 1948, uma população hoje na casa de 7,26 milhões de pessoas.

O segundo conjunto de Oslo é o próprio “corpo” do processo de paz, consubstanciado nas instituições e dinâmicas políticas que regravam a relação entre as partes, palestinos e israelenses, estes mediados por uma terceira, os EUA. As criações de Oslo deveriam fazer convergir o conjunto de consensos para concretizar um Acordo de paz de fato.

As criações de Oslo deveriam fazer convergir o conjunto de consensos para concretizar um Acordo de paz de fato, porém o que se dá são transferências de responsabilidades das partes envolvidas e apagamentos de direitos palestinos.

Os contornos iniciais dos Acordos estão no Artigo I da Declaração de Princípios (DOP), o primeiro documento oficial do processo, assinado e celebrado no gramado da Casa Branca por meio da notória foto de Yitzhak Rabin, então primeiro-ministro israelense, no aperto de mãos com Yasser Arafat, na época líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), tendo Bill Clinton, então presidente dos EUA, como mediador. Logo nas primeiras linhas, o “objetivo das negociações” definia, entre outras questões, uma Autoridade Interina Palestina de Autogoverno “para o povo palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, para um período transicional que não [poderia] exceder cinco anos, levando a um arranjo permanente baseado na resolução do Conselho de Segurança 242 (1967) (GRIFO MEU)

A partir de então, portanto, os palestinos nos  Territórios Palestinos Ocupados, TPO, seriam governados por um governo próprio semiautônomo, a Autoridade Nacional Palestina (ANP). Uma segunda implicação era, com a Resolução 242 como molde do processo, a chave “Terra por Paz”, um corolário da ideia de uma partição do território (O’MALLEY, 2015; SHLAIM, 2000; TONGE, 2014). A 242 (de 22 de novembro de 1967) implicava a saída de Israel dos Territórios Palestinos que ocupava em troca do fim das hostilidades, ou seja, a aceitação do Estado Judeu pelos vizinhos e pelos palestinos. Estava previsto que, concluído o processo, seria assinado um “acordo de fim de reivindicações” (O’MALLEY, 2015, p. 63).

Apagar os direitos

O problema é que os consensos sobre a questão não ganharam forma clara e definida na redação dos documentos de Oslo, já que a lei internacional foi apenas um termo de referência passível de ser modificado na barganha das negociações entre as partes. O molde de resolução de conflitos proveu dinâmicas como a “ambiguidade construtiva”, que seria o modo aberto para facilitar compromissos, ou de Medidas de Construção de Confiança (CBM), desenhadas para consolidar credibilidade entre as partes como base para negociações finais. Isso significava ignorar, no decorrer do processo, as “questões centrais” (O’MALLEY, 2015).  

Os EUA, já no início dos 90, promoveram a ideia de negociações entre os dois lados sem um entendimento a priori de direitos a serem protegidos. Em uma carta aos palestinos, a diplomacia do país deixou clara sua visão de que a ONU (e seu corpo de resoluções) deveria manter-se distante do processo bilateral: “Desde que é de interesse de todas as partes esse processo ser bem-sucedido, […] os EUA não apoiarão um processo competitivo ou paralelo no Conselho de Segurança da ONU.”  

Esse amplo molde de Oslo aplacava algumas preocupações israelenses. Uma delas é a de que os aspectos territoriais (fronteiras e Jerusalém) e, consequentemente, a lógica da partição, não se acomodam bem com o direito do retorno, da Resolução 194. O mapa da proposta da ONU para a partição de 1947, por exemplo, tinha, no interior do território imaginado do Estado Judeu, aproximadamente 50% de população árabe-palestina (KATTAN, 2009, p. 151), uma proporção inaceitável do ponto de vista das preocupações demográficas israelenses.  

Já em 2001, Bill Clinton, no final de seu segundo mandato, propõe os Parâmetros Clinton, uma nova tentativa de colocar em curso negociações para um Acordo Final. Ali, em um dos trechos sobre a questão do retorno, ele deixava cristalina aos palestinos as condições consolidadas pelo processo: “O lado israelense não poderia aceitar qualquer referência a um direito de retorno que implicaria o direito de imigrar a Israel em desafio às políticas de soberania israelenses sobre entrada ou que ameaçaria o caráter judeu do Estado” (ENDERLIN, 2002, p. 337). Na prática, era a elaboração explícita de que os palestinos deveriam aceitar qualquer “concessão” territorial israelense pelo direito daqueles que foram expulsos da Palestina.

Foi assim que o “corpo” do processo, a sua própria institucionalidade, serviu à construção da sustentabilidade da destruição dos palestinos, enquanto apagava o corpo de leis internacionais relacionado à questão que deveria protegê-los. As últimas ações do atual presidente dos EUA, Donald Trump, com a mudança da embaixada de Tel Aviv para a Jerusalém ocupada e o fim da contribuição estadunidense para a United Nations Relief Works Agency (UNRWA), são os sinais mais recentes dessa sequência desenhada por Oslo.

Controlar o território

Já no território, com a implementação das políticas dos Acordos, os novos mecanismos de dominação sobre os palestinos surgem com a separação como uma política feita em diversos níveis, que resultou em um maior controle israelense sobre território e demografia, e a terceirização da administração, que significou um novo compartilhamento da violência com outros atores internacionais.

A separação teve base em mecanismos de fragmentação do espaço palestino formulados a partir das novas fronteiras instituídas nos Acordos. Essa reorganização espacial deu-se a partir dos “Acordos Interinos sobre Cisjordânia e Faixa de Gaza”, de 28 de setembro de 1995. Houve uma divisão dos Territórios Ocupados em áreas A, B e C (uma premissa da chave de concessão gradual de terras aos palestinos). Isso foi traduzido em políticas do Estado israelense de imposição de bloqueios para isolar partes dos TPO. É quando surgem os postos de controle em profusão pelos Territórios Palestinos (HANDEL, 2009; KAMVARA, 2016).

O segundo processo foi a terceirização, elaborado a partir do abandono que Israel pôde, a partir de Oslo, realizar de suas atribuições como ocupante. Essa mescla  de instituições e dinâmicas davam, na virada do milênio, o papel de sobrevivência ou alívio da população palestina, que pela Quarta Convenção de Genebra seria do ocupante israelense, à ANP, agências da ONU, ONGs internacionais e governos estrangeiros (AZOULAY; OPHIR, 2013, p. 102). Uma nova forma de domínio, por meio de uma “arquitetura” militar, política e econômica embutida em Oslo, era instalada, informada pelas preocupações de segurança israelenses. Assim, a Ocupação e responsabilidades diretas sobre os territórios eram substituídas por um “sistema político prostético sustentado pela comunidade internacional” (WEIZMANN, 2007, p. 141).

A partir dos 2000, esse modelo consolida novas condições para o uso da força. Um relatório oficial revelado pelo jornalista Jonathan Cook sugeria uma série de propostas de bloqueio para lidar com a Gaza do Hamas. Um exemplo: o Ministério da Saúde israelense determinava que a população precisava de uma média de 2.279 calorias para evitar a má nutrição. Isso equivalia, a partir de cálculos de produção interna e da cultura do consumo, à necessidade de uma carga de 170 caminhões por dia. No entanto, a média de caminhões permitidos para entrar em Gaza era de 67. Antes do bloqueio (até 2006), mais de 400 caminhões levavam suas cargas para dentro do território.

A segunda estratégia para lidar com Gaza foi a Doutrina Dahyia, uma estratégia militar desenvolvida em 2006 nos ataques israelenses ao Líbano. Para destruir o quartel-general do Hizbollah, nos arredores de Beirute, no bairro de Dahyia, o exército de Israel eliminou a distinção entre civis e alvos militares (HIRST, 2010, p. 396), com destruição de corpos e de infraestrutura. De acordo com dados da organização Btselem, um total de 2.700 pessoas foram mortas por ataques israelenses a Gaza desde 2008. Em 2014, no período de 51 dias, 2.131 palestinos foram mortos, incluindo 501 crianças. O Ministério da Saúde de Gaza registrou 10.918 feridos, sendo 3.312 crianças e 2.120, mulheres (PUAR, 2017, p. 127).

Assim, a nova elaboração da violência, com a fragmentação física do território, era a convergência de formas de domínio e destruição israelenses com um conjunto de dinâmicas políticas e econômicas que a sustentaram, montadas pela comunidade  internacional, especialmente o mediador. Enquanto isso, seu “espírito” era, e é, gradualmente desmontado, tornando a Palestina uma entidade cada vez mais improvável de vir a ser em termos reais.

Um último ponto a ser destacado é que, diante do quadro exposto neste texto, o processo garantiu que os palestinos nos TPO fizessem parte desses mecanismos, algo que Israel não havia conseguido concretizar. Por um lado, a proliferação de ONGs financiadas por doadores externos solapou potenciais criativos e de mobilização da sociedade palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza (HADDAD, 2015, p. 8; KAMVARA, 2016, p. 8). Por outro, a criação da ANP mudou a orientação da classe média palestina, de parte da luta de libertação nacional para uma classe empreendedora e comercialmente interessada (KAMVARA, 2016, p.8).

Os TPO, assim, tornaram-se uma “laboratório de controle”, onde atuam um arco de agentes munidos de uma variedade de tecnologias de governança e violência – o qual segue, gradualmente, destruindo a oposição à colonização israelense  (DA’NA, 2014, p. 130).


  1. Survey of Palestinian Refugees and Internally Displaced Persons 2013 – 2015 Volume VIII. Dados cotejados pela ONG palestina Badil, que baseia seus números nos relatórios da UNRWA, a agência da ONU para assistência aos refugiados palestinos, mas computa outros dados, como o de palestinos não registrados, tanto em países vizinhos como fora do Oriente Médio.
  2. Declaração de Princípios sobre os Arranjos Interinos de Autogoverno. Disponível em: <https://ecf.org.il/media_items/612>.
  3. Fonte: U.S. Department of State, Letter of Assurances to the Palestinian team, October 18, 1991, in Palestine Yearbook of International Law, vol . 6, p . 281-282, 1990 – 91. Conforme QUIGLEY (2005, p. 215).
  4. “Resolve que os refugiados que desejarem retornar a suas casas e viver em paz com os seus vizinhos devem ser permitidos a fazê-lo na data praticável mais breve, e que compensação deve ser paga pela propriedade daqueles que escolherem não retornar e daqueles que perderam ou tiveram propriedade danificada, sob os princípios da lei internacional ou em equidade, o que deve ser feito pelos governos e autoridades responsáveis;” – Resolução 194, 11 de dezembro de 1948. Disponível em: <https://unispal.un.org/DPA/DPR/unispal.nsf/0/C758572B78D1CD0085256BCF0077E51A>.
  5. Um corte para US$ 60 milhões, de US$ 350 milhões prometidos. “U.S. envoy Haley questions Palestinian refugee numbers”. Fonte: Reuters, 28 de agosto de 2018.
  6. Na área A, 3% da Cisjordânia, com 26% da população em 1995, a ANP teria responsabilidade pela lei e pela ordem. Em área B 24% da Cisjordânia, 70% da população a ANP teria responsabilidade pela ordem pública, mas Israel manteria comando sobre a segurança. Na Área C, que correspondia a 73% da terra e 4% da população, Israel deteria a responsabilidade total por segurança e ordem pública, além de questões civis em relação a território, como planejamento e zoneamento (AZOULAY; OPHIR, 2013; GORDON, 2008).
  7. Fonte: < https://electronicintifada.net/content/israels-starvation-diet-gaza/11810 >.
  8. Fonte: <https://www.btselem.org/statistics/fatalities/after-cast-lead/by-date-of-event>

 

 

Para saber mais:

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZOULAY, Ariella; OPHIR, Adir. The One-State Condition. Occupation and Democracy in Israel/Palestine. Ed. Stanford, 2013.

DA’NA, Tariq. Disconnecting Civil Society from its Historical Extension: NGOs and Neoliberalism in Palestine. In: TAKAHASHI, Saul (ed.). Human Rights, Human Security, National Security: The Intersection. Ed. Praeger Security International, 2014.

ENDERLIN, Charles. Shattered Dreams. Ed. OtherPress, 2002.

GORDON, Neve. Israel’s Occupation. Ed. University of California, 2008.

HADDAD, Toufiq. Palestine Ltd. Neoliberalism and Nationalism in the Occupied Territory. Ed. I.B. Tauris, 2016.

HANDEL, Ariel. Where, where to, and when in the Occupied Territories: an introduction to geography of disaster. In: OPHIR, Adi; GIVONI, Michal; HANAFI, Sari (Eds.). The power of Inclusive Exclusion. Ed. Zone Books, 2009.

HIRST, David. Beware of small states – Lebanon, battleground of the Middle East. Ed. Faber and Faber, 2010.

KAMVARA, Mehran. The Impossibility of Palestine, History, Geography, and the Road Ahead. Ed. Yale, 2016.

KATTAN, Victor. From Coexistence to Conquest: International Law and the Origins of the Arab-Israeli Conflict, 1891-1949. Londres/NovaYork: Ed. Pluto Press, 2009.

NABULSI, Karma. The Peace Process and the Palestinians: a road map to Mars. International Affairs (Royal Institute of International Affairs 1944-), v. 80, n. 2, p. 221-231, 2004. Disponível em: <www.jstor.org/stable/3569239>.

O’MALLEY, Padraig. The Two State Delusion. Ed. Viking, 2015.

PUAR, Jasbir K. The Right to Maim – Debility, capacity, disability. Ed. Duke University, 2017.

QUIGLEY, John. The case for Palestine, an international law perspective. Ed. Duke University, 2005.

SHLAIM, Avi. The Iron Wall, Israel and the Arab World. Ed. Norton, 2000.

TONGE, Jonathan. Comparative Peace Processes. Ed. Polity, 2014.

WEIZMAN, Eyal. Hollow Land – Israel’s Architecture of Occupation. Londres/NovaYork: Ed. Verso, 2007.

Sobre o autor:

Arturo Hartmann é doutorando no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas de Relações Internacionais (UNESP, Unicamp e PUC-SP), em que estuda os impactos do processo de paz mediado pelos EUA sobre Israel e os Territórios Palestinos Ocupados. É pesquisador, corroteirista e codiretor do documentário “Sobre futebol e barreiras: um olhar sobre o conflito Palestina/Israel durante a Copa de 2010”. É jornalista, ativista da causa palestina e membro da organização Rabet.
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