Passaporte
Tradução: Diego Montecinos
1
Eles param em filas
acendem cigarros
acendem seus corações
Longas, longas são essas filas
“Espere no final”, um deles me diz
“Você chegou atrasado.”
Eu respiro bem fundo e digo:
“Quando vocês chegaram?
Vocês dormiram aqui?”
Eu paro e empurro o balanço sobre a corda da espera
e sussurro em segredo
Meus anos se consomem e eu espero
Não há inconveniente em esperar de novo, não há
Eu espero como milhares
Todos sentem inveja do primeiro que sorri
É aquele que é o primeiro do comboio
Todos murmuram
Param, prendem a respiração e suspiram profundamente
O tempo passa devagar como um velho que empurra seus passos pesados
São sete horas da manhã, depois de o sangue congelar
O sol de inverno se aproxima de nós e se afasta
Está na hora das portas se abrirem, as janelas da salvação provisória
A porta se abre, todos atacam como se atrás dessa porta houvesse um tesouro de ouro
ou se o paraíso os esperasse ali
Estávamos parados nessa fila ilusória
mas num único instante todos se explodiram
e a fila se tornou um rosário disperso
Todos se empurram sobre a porta de ferro estreita
apertam-se
combatem-se
amontoam-se
matam-se.
e não rezam
Para, então, um funcionário de sorriso amarelo
olha para o mais alto deles, como um deus autoritário
como se todos eles fossem servos em peregrinação ao seu escritório preto
Ele pega sua xícara de café e o toma lentamente
e diz para eles, com a entonação dos reis:
“Ninguém entrará, então, não se cansem.”
Eles fogem da fadiga, do tempo, e se vão
Retornam de onde vieram
retornam para suas mortes esperadas
As pessoas olham em seus rostos
elas se odeiam
ofendem-se
amaldiçoam-se
brigam entre si
gritam
e fazem silêncio
e param
e sentam-se
Um deles diz: “Eu quero um passaporte,
não quero outra coisa de vocês.
Dê-me um passaporte para sair daqui.”
E então todos gritam: “Nós somos como você.”
2
Eu paro ao lado, coloco a mão no rosto
minha voz se afoga dentro da minha garganta
eu engulo a minha angústia
apago o cigarro cansado sob os meus pés
Ó meu povo, o quanto vocês foram torturados!
Eles nos puseram nesta prisão coletiva
Disseram: “Nós temos o que vocês têm, e nos impomos sobre vocês.”
Mas eles não disseram que viveríamos e morreríamos aqui
não disseram que este exílio irá nos prender e matar
não disseram que todos conspiram contra nós
que eles venderam nossa terra para apodrecermos neste lugar contaminado
não disseram que eles irão lutar entre si
e que nós seremos escudos humanos e vítimas de uma guerra doente
Não disseram que a primavera dos árabes é nosso outono
não disseram que todos os países irão nos recusar
e que nosso passaporte é simplesmente uma grande mentira
Disseram-nos: “Nós, árabes, somos teus irmãos, vocês estão sob nossa proteção.”
Não disseram que no leilão mundial iriam vender nossos corpos
Disseram-nos que somos refugiados honrados aqui
Não disseram que seríamos presos e escravizados no mercado de tráfico de árabes
Ó cidadão tingido pelo sangue dos que se foram!
Ó cidadão que chora sobre uma oliveira!
Onde está você para chorar por nós?
Ó cidadão que resta sobre o mapa de nossos corações!
Onde está você para escutar nosso grito
e apertar a nossa mão?
Ó cidadão, mantenha firme o rosto ao vento!
Onde está você para salvar o resto de nós?
Ó árabe adormecido nos braços da vizinhança,
eu te chamarei de inimigo!
Sim, não se surpreenda, e acredite na mentira que te contei
Eu te chamarei de inimigo
ensinarei a meu filho que virá do útero do exílio
eu o farei saber que foi você que me matou
e que você agiu de modo pérfido com minha terra
e trespassou minha cintura
Eu o farei saber que você é como os irmãos de José
“Aprenda com as histórias dos primeiros”...dizia para mim o meu senhor
e só agora aprendi, entendi quais deles são seus irmãos, e quais são meus
Ó meu povo sem lar, abandonado nas sendas dessa terra em luto!
No lugar de um filho, terei milhares e milhares de filhos
para contar a eles a história da Palestina, e a seus irmãos
para que saibam quem são os primeiros inimigos, e qual a nossa primeira causa
Ó mães da terra usurpada!
Todo inverno traz milhares e milhares de filhos
A cada gota da chuva um recém-nascido é enviado para nós
a cada gota de chuva direi aos árabes
que pereçam
Ó pastores descalços traíras! [traidores]
3
Ó passaporte preso numa cela árabe
queime, queime você mesmo e queime meu nome!
Minha alma voará para atravessar as ilhas, as fronteiras, os muros
minha alma voará, sem visto, sem a autorização de um rei árabe feliz
minha alma voará para observá-los com atenção e afligi-los com minha eterna maldição
Na Terra vocês são reis de um povo tolo
No Céu há o rei dos reis, esperem o chamado da minha terra
esperem o castigo que cairá sobre os primeiros e os últimos de vocês
Ó passaporte preso em mãos árabes!
Rasgarei as suas folhas com decepção
e o jogarei na lata de lixo da imoralidade árabe
Não quero você, não quero um nome qualquer
Sou um palestino parado à beira da morte
Não tenho medo da morte
A imoralidade de vocês não irá me deter
Minha alma voará para beijar a cúpula amarela na terra santa
minha alma voará para erguer a bandeira de meu país ali sobre a fronte do sol.
Damasco, 2013.
Sobre o autor:
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